Internacional

Arsenal vizinho preocupa o Japão. E não é o de Kim

Se o Leste Asiático fosse uma escola, o Japão seria aquele aluno que ouve as provocações de um valentão capaz de explodir a cidade inteira com um botão, mas se preocupa mesmo é com o rancor de outro colega – aquele que sofreu bullying quando era mirrado, virou o fortão da vizinhança e junta em silêncio armas em casa. Sem dizer a ninguém exatamente quantas.

Aos 103 anos, o japonês Masao Horie acompanhou como poucos a mutação geopolítica que forjou a atual relação do Japão com a valentona Coreia do Norte e a encorpada China. Ele é um dos soldados do Império Japonês que invadiram a China na chamada Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945), conflito que logo se confundiria com a frente asiática da 2.ª Guerra (1939-1945).

Foram três anos combatendo em solo chinês, país que percorreu de norte a sul em batalhas contra tropas locais e ocidentais, que chegaram em socorro aos chineses. Horie viveu o bastante para acompanhar a sucessão de ditadores na Coreia do Norte desde sua criação, em 1948. Viu o atual, Kim Jong-un, disparar dois mísseis que sobrevoaram o Japão e suas cerejeiras em 2017. Nem mesmo isso o leva a preocupar-se mais com a Coreia do Norte do que com a China. E ele não está só.

O Estado entrevistou separadamente quatro especialistas do governo japonês com acesso a dados reservados sobre o arsenal chinês e as incursões de navios e aviões de Pequim em áreas que o Japão considera suas. Todos colocaram a China como primeira preocupação e acusam o vizinho de “falta de transparência” no gasto com armas. Estes funcionários japoneses, um dos quais viveu na China dois anos, consideram a Coreia do Norte um impasse que pode ser resolvido no curto prazo. Insistem que o problema central é a mudança no equilíbrio de poder da região.

“A Coreia do Norte não tem nada além de armas nucleares. Se a desnuclearização for feita, talvez tudo fique certo. Com a China é diferente. Não é só uma questão militar. A hegemonia no século está em jogo, está em jogo qual superpotência dominará”, concorda Masahiro Kohara, professor de direito e política na Universidade de Tóquio. “O Japão e outros países da região estão no meio de duas superpotências. Às vezes, eles têm relações militares com os EUA e comerciais com a China. O Japão não é exceção”, completa. Pelo menos três fatores justificam essa preocupação.

Gastos díspares

Nos últimos dez anos, a China mais que dobrou seu gastos em defesa. O Japão elevou suavemente os seus, passando agora da casa do 1% do PIB. O orçamento militar declarado pela China é 5 vezes o do Japão, e a diferença tende a aumentar. Após deixar a vida militar, Horie foi senador e, em função de seu histórico, passou a ser referência no tema.

“Principalmente depois do fim da URSS, os países europeus ocidentais reduziram muito o investimento em defesa. O Japão fez a mesma coisa e hoje depende essencialmente dos EUA. Não podemos depender 100%”, lamenta.

Essa dependência dos americanos desperta nele sentimentos contraditórios. Após combater na China, foi enviado para Nova Guiné, em 1943, onde passou três anos lutando contra os Aliados. Dos 150 mil combatentes japoneses na região, 130 mil morreram. A maioria, vítima de fome e doenças tropicais.

“A diferença de armamento era gigante. Estávamos a 5 mil quilômetros do Japão, não havia comida, e a filosofia militar era não ser capturado. Havia duas alternativas, atacar ou se suicidar. Eu estava perto de morrer quando o imperador declarou a rendição. Duvidei sobre o que fazer, pois o território principal japonês não tinha sido invadido. Só quando voltei e vi a destruição da bomba atômica, me conformei”, diz Horie, que estudou em Hiroshima, uma das cidades-alvo, ao lado de Nagasaki. “Depois disso, os EUA transformaram o Japão no que queriam, algo que nunca havia ocorrido em 2 mil anos. O povo ficou perdido, mas os EUA ajudaram porque não tínhamos nada para comer”, reflete.

Distanciamento de Trump

Uma das linhas da política externa do presidente americano, Donald Trump, é dizer que os EUA não devem ser a polícia do mundo e logo cobrar mais por este papel. “Trump não está interessado em garantir uma defesa forte, isso é um grande problema. Isso muda a relação que os países são obrigados a ter com a China”, diz o professor Kohara. Para Robert Dujarric, diretor do Instituto de Estudos Asiáticos da Universidade Temple, ainda que Trump tenha se tornado um inimigo do sistema internacional desenhado pelos próprios EUA, “qualquer ataque ao Japão levaria provavelmente a uma guerra entre EUA e China”.

Constituição Pacifista

Após a 2.ª Guerra, os EUA estabeleceram limites rigorosos ao armamentismo japonês, consolidados na chamada Constituição Pacifista. Seu artigo 9.º proíbe o Japão de ter um Exército. Permite sim forças de autodefesa, conceito que vem sendo flexibilizado com a adaptação de dois porta-helicópteros para operar como porta-aviões e a compra de caças F-35 – seriam 105 ao todo, ao custo de US$ 10 bilhões, dos quais 42 F-35B, que fazem pousos verticais.

Além de lidar com críticas a cada aquisição de armamento, o Japão enfrenta outro problema para encorpar sua “autodefesa”. Os jovens não estão interessados na carreira, admitem funcionários do governo. Morador de Tóquio, Miyoshi Hiroaki, de 25 anos, faz uma careta sob a máscara com a qual previne resfriados, ao ser questionado sobre o tema. “Não me preocupo com essas coisas.” Questionado sobre o que seriam “essas coisas”, o jovem, que se dedica à produção de propaganda para a internet e nunca pensou em entrar para a autodefesa, esclarece: “China e Coreia do Norte”.

Horie pondera que esse desinteresse faz parte de outra grave ameaça ao Japão, esta interna, que ele considera tão perigosa quanto a valentona Coreia do Norte e a marombada China: o envelhecimento populacional. Até 2050, o país tende a perder 30 milhões de habitantes. “Não é só para a Defesa. Na indústria em geral faltam jovens”, afirma o homem que ingressou na escola militar aos 14 anos, foi casado durante 75 anos (sua mulher morreu aos 95) e credita sua longevidade à boa alimentação. “Fui comandante em Nova Guiné por três anos e nunca fiquei ferido. As balas atingiam meus subordinados e nunca me atingiram. Acho que também tive sorte.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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