A crise da segurança pública no Espírito Santo, que já deixou pelos menos 95 mortos desde sábado, 4, ganhou contornos mais dramáticos. A Polícia Civil paralisou nesta quarta-feira, 8, as atividades no Estado, suspendendo registros de ocorrência e atendimento. A PM manteve o motim e a negociação com o Estado, que fala em “sequestro da população”, não avançou ontem.
A interrupção dos serviços pelos civis foi decidida após a morte do policial Marcelo Albuquerque, de 44 anos, que tentou impedir um assalto em Colatina, na Grande Vitória. Muito emocionada, a mulher do investigador, Patrícia Albuquerque, segurava o filho mais novo do casal, Kaio, de 8 meses, durante o sepultamento do marido. O mais velho, Kaique, de 8, era consolado por parentes. “Espero que a mensagem que fique é que acabe logo tudo isso que está acontecendo. Hoje foi o meu marido, mas amanhã poderá ser o familiar de outra pessoa.”
Pouco antes do anúncio do fechamento de delegacias, o governador licenciado Paulo Hartung (sem partido) disse que não sucumbiria “à chantagem corporativa”, referindo-se ao motim da Polícia Militar, que chega ao sexto dia.
Ele afirmou ainda que não pagará pelo “resgate”. “É o mesmo que sequestrar o direito do cidadão capixaba. Não se pode pagar resgate nem pelo aspecto ético nem por uma questão que é fundamental na vida dos brasileiros, que é a Lei de Responsabilidade Fiscal”, afirmou o governador, afastado para tratar de tumor na bexiga. Segundo ele, atender à reivindicação dos policiais custaria R$ 500 milhões.
Sem dar nomes, Hartung atribuiu a paralisação, com base em bloqueios de familiares nas frentes dos quartéis, a um “movimento político” para desestruturar a administração. “É desumano, inadmissível, que outros interesses políticos estejam acima da vida”, afirmou.
Reforço
Os Ministérios da Defesa e da Justiça autorizaram a ida de mais 550 militares e 100 agentes da Força Nacional de Segurança para o Estado. A ajuda federal, solicitada para o reforço do policiamento, chega agora a 1.850 homens.
Nesta quarta, ônibus não circularam e as escolas permaneceram fechadas. Moradores enfrentaram filas de até três horas nos supermercados. Muitas redes limitaram o acesso para evitar saques. Em Cariacica, na Grande Vitória, comerciantes da Avenida Expedito Garcia, conhecido como shopping aberto do Estado, fizeram manifestação contra a paralisação da PM. “Queremos trabalhar”, gritavam.
“As pessoas estão sitiadas em casa. Nas regiões periféricas, a violência está mais presente. Em alguns bairros existe conflito entre facções e há um ajuste de contas nas periferias, com justiceiros atuando”, afirmou o vereador de Cariacica Celso Andreom (PT). Ele contou que pediu uma pizza e depois ligou para o restaurante, a fim de reclamar da demora. “Explicaram que o entregador foi assaltado. Levaram a moto, as pizzas e o dinheiro que ele carregava.”
Por medo da violência, moradores têm se organizado para fazer a segurança por conta própria de condomínios em que vivem. No bairro Colina de Laranjeiras, em Serra, na Grande Vitória, duas tentativas de invasão fizeram com que um grupo de 30 pessoas, com auxílio de PMs que vivem ali, se organizasse para fazer vigília durante as madrugadas. Até mesmo barricadas são montadas todas as noites em uma rua do entorno.
Desde domingo, homens armados atiraram em um transformador e deixaram a região sem luz e PMs que vivem no local dispersaram a tiros criminosos que tentavam invadir o condomínio a tiros. “A gente tem mais de 40 PMs morando aqui”, afirma Valdison Júnior, de 31 anos, um dos síndicos.
A vigilância começa às 19 horas e vai até as 6 horas. Anteriormente, eles usavam um latão e pedaços de madeira para montar uma barricada em uma rua ao lado. “A gente não fecha a rua. A intenção é que os veículos diminuam a velocidade quando passam por lá. Isso dificulta uma fuga”, explica Júnior.
A cada movimentação suspeita, o grupo se comunica com o auxílio de celulares. Até mesmo moradores não envolvidos diretamente com a vigilância ajudam sempre que observam uma movimentação suspeita das janelas.
Além do trabalho voluntário, os moradores do condomínio pagam R$ 1 mil por dia para quatro seguranças profissionais. O pagamento é feito com uma vaquinha criada pelos moradores. Suellen Cruz, de 29 anos, é mineira e diz que só não deixou o Espírito Santo porque é síndica de um dos condomínios que desde sábado realiza a vigília. “Tenho de cuidar de outras famílias, mas, se eu não fosse síndica já tinha ido embora.”
O condomínio da advogada Paula Araújo Silva, de 43 anos, na Praia do Canto, em Vitória, também contratou segurança particular armada. Pelas redes sociais, os vizinhos acionam uns aos outros quando falta remédio ou se precisam de algum item para complementar a despensa.
Tudo para evitar a entrada de entregadores e pessoas estranhas no prédio. Também combinaram de manter as luzes de todas as varandas acesas. “Estamos vivendo como se estivéssemos em prisão domiciliar.”
Eles se cotizaram para pagar R$ 1 mil por 12 horas de segurança privada. Ontem, Paula e os vizinhos fizeram almoço coletivo: assaram um carneiro que ela tinha congelado em casa.
IML
Policiais civis paralisaram as atividades nas delegacias até a meia-noite desta quarta-feira, 8. O serviço no Departamento Médico Legal, lotado de corpos desde o início do motim, foi mantido. Hoje, delegacias locais permanecerão fechadas. Somente as Delegacias Regionais funcionarão. “É uma tragédia anunciada e o governador não dialoga”, afirmou o presidente do Sindicato dos Policiais Civis (Sindpol), Jorge Emílio Leal.
De acordo com Leal, houve pressão do governo para que as planilhas sobre mortes violentas deixassem de ser atualizadas. “O último número que nós temos é de 95 homicídios, mas não houve atualização desde a manhã. Isso não significa que as mortes tenham sido interrompidas, pelo contrário: a gente já sabe que pelo menos um PM foi baleado e parece que morreu.”