“Eu não tenho nada a ver com os filhos das outras mães.” A recusa veemente de uma mulher em doar os órgãos da filha foi um dos momentos que mais marcaram os 21 anos de carreira de Edvaldo Leal de Moraes, vice-coordenador da Organização de Procura de Órgãos (OPO) do Hospital de Clínicas de São Paulo. Mesmo em um País em que a fila de espera por um órgão chega a cinco anos, o relato não é um caso isolado. Quase metade das famílias ainda rejeita a doação de órgãos no País.
Entre as 34.543 pessoas que esperavam um transplante no País em dezembro, 21.264 precisam de rim, 10.293 de córnea, 1.331 de fígado, 539 de pâncreas e rim, 282 de coração, 172 de pulmão e 31 de pâncreas. Em 2016, 2.013 pessoas que estavam na fila por um órgão, morreram. Dessas, 82 eram crianças. No ano passado, as centrais estaduais de transplantes identificaram 10.158 pessoas que tiveram morte encefálica e poderiam ser doadoras. De 5.939 famílias consultadas, 2.571 (ou 43%) não deram a autorização necessária.
Os dados foram compilados pela Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), com base nas informações das centrais estaduais de transplantes, e divulgados anteontem pelo Ministério da Saúde. “O índice de recusa é bem alto. A Espanha é país líder em transplante e lá a recusa das famílias é de menos de 20%”, afirma Roberto Manfro, presidente da ABTO. Houve pequeno aumento no número de doadores em relação a 2015 – de 2.854 para 2.981.
Nos Estados do Norte, estão os maiores índices de rejeição à doação. No Acre, chega a 81%; Rondônia registrou 76% e Tocantins, 75%. “O grande empecilho é a falta de conhecimento de saber que a morte encefálica é uma situação de irreversibilidade absoluta”, afirma Manfro. Para atestar a morte encefálica, são necessários avaliação de especialista (neurologista ou neurocirurgião) e exame complementar que ateste que o cérebro não tem atividade elétrica (eletroencefalograma) ou que não há mais circulação de sangue no cérebro (angiotomografia, angiografia, angiorressonância e cintilografia do cérebro).
Nesta semana, a gerente médica da unidade cardiointensiva do Hospital CopaStar do Rio, Jaqueline Miranda, acompanhou um caso de negativa de uma família. “Era um homem grande, salvaria quatro ou cinco vidas. A gente entende a reação das famílias nesse momento de tanta dor. Não dá para colocar nelas a culpa”, afirmou. “É impactante para o entrevistador ouvir isso (a recusa). A gente se sente impotente, incompetente”, relata Moraes.
Ele estuda desde 2005 os motivos pelos quais ainda há tanta recusa na doação de órgãos em casos de morte encefálica e a resposta é complexa, pois envolve aspectos culturais e a falta de informação. “Ainda há muito a crença de que ocorrerá um milagre, mesmo em pessoas que até então não tinham manifestado nenhum tipo de ligação religiosa”, comenta.
Segundo Moraes, mais do que familiares de pacientes, há muitos profissionais de saúde que também não compreendem ou não aceitam um diagnóstico de morte encefálica. É a mesma análise do coordenador médico do núcleo de captação de órgãos do Hospital Israelita Albert Einstein, José Eduardo Afonso Junior. Mais do que isso, Moraes afirma ter presenciado muitos casos de pessoas que rechaçavam a doação por desacreditar no Sistema Único de Saúde, chegando a cogitar a hipótese de que poderiam ter o tratamento adiado para que seus órgãos fossem retirados.
Campanhas
José Ottaiano, vice-presidente do Conselho Brasileiro de Oftalmologia, lembra que a adesão à doação de órgão é maior quando há campanhas nacionais, um caso de maior comoção, ou até quando o tema é abordado em filmes ou novelas. “A doação é uma coisa conjuntural.
A divulgação pela imprensa e em novelas realmente facilita”, afirmou. Em 2014, na novela Em Família, da Rede Globo, o personagem Cadu, interpretado por Reynaldo Gianecchini, passou por transplante de coração. Em 2013, houve 271 transplantes do órgão. No ano da novela, o número subiu para 311.
Para Manfro, uma atitude eficiente para quem quer ser doador é avisar à família. “Ela geralmente respeitamesse desejo.”
Capacitação
O coordenador médico do núcleo de captação de órgãos do Hospital Israelita Albert Einstein, José Eduardo Afonso Junior, observa que uma das possíveis explicações para a rejeição à doação de órgãos é uma falta de preparo profissional.
Para reverter isso, ele aponta investimentos em classificação, como as pós-graduações em Captação de Órgãos que o Ministério da Saúde realiza em parceria com alguns hospitais, como o Einstein. Durante as aulas, os profissionais participam de simulações de todo o processo, desde o diagnóstico até as conversas com a família e orientações sobre armazenamento dos órgãos. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.