A legislação existente no Brasil é suficiente para coibir casos de calúnias na internet e ao mesmo tempo garantir a liberdade de expressão. Portanto, iniciativas como a emenda à reforma política que autorizava a retirada de conteúdo da internet sem autorização judicial – vetada pelo presidente Michel Temer -, além de desnecessária, representava uma ameaça às liberdades democráticas. A opinião é de Patrícia Blanco, presidente do Instituto Palavra Aberta, que atua na defesa da liberdade de expressão. Segundo ela, as pessoas estão mais conservadoras e autoritárias e, por isso, a ameaça de censura hoje vem da própria sociedade ao contrário da ditadura militar, quando era uma ação do Estado. Os principais trechos da entrevista:
A emenda aprovada pela Câmara ameaçava a liberdade de expressão?
Totalmente. Ela cria a possibilidade para que qualquer pessoa possa solicitar a remoção de conteúdo mesmo que momentaneamente, de qualquer provedor de aceso, desde uma rede social até um site jornalístico. Isso preocupa demais pela forma como foi colocado, no apagar das luzes. É uma forma de censura.
O que pode ser feito para evitar a propagação de mensagens de ódio e notícias falsas sem afetar a liberdade de expressão?
Esta é uma discussão mundial. O fato é que não adianta propor uma emenda para coibir algo que transcende a questão legislativa. É uma questão cultural, de educação. Nós partimos de um ambiente totalmente fechado onde ninguém tinha voz, na ditadura, conquistamos a liberdade de expressão e de 10 anos para cá tivemos a popularização das redes sociais. Partimos do nada para um ambiente de liberdade total. Ainda estamos aprendendo a viver nesse ambiente. Precisamos investir neste aprendizado, na educação digital, na educação midiática, para fazer aquele cidadão usar essa ferramenta para o bem. Como diz o ministro Ayres Britto, não é pelo medo do abuso que vamos coibir o uso.
A legislação brasileira é suficiente neste tema?
Acredito que sim. Primeiro temos a própria Constituição que determina a liberdade mas também previne contra abusos com mecanismos de ressarcimento e direito de resposta a partir do momento em que alguém se sente lesado. O Marco Civil da Internet também é bastante abrangente neste sentido nas questões de retirada de conteúdo e propagação de crimes como pedofilia, pornografia de revanche como aconteceram com a Carolina Dieckmann e até com a Marcela Temer. Existem casos reais de punições a partir da legislação existente. Não é preciso criar um novo arcabouço jurídico. Temos uma estrutura legal extremamente rica e que propicia a liberdade de expressão. É claro que um boato pode causar danos enormes até ser revertido. Mas a saída é, repito, investir em educação digital.
Existe alguma conexão entre a aprovação da emenda, o projeto que proíbe a “profanação religiosa” em eventos artísticos, restrições religiosas e morais na Lei Rouanet e a reação às exposições com nudez?
Não existe uma ação orquestrada. O que eu vejo e é muito preocupante é um retrocesso na questão cultural. As pessoas estão retrocedendo nos costumes e se tornando mais autoritárias.
É possível identificar o que gerou este retrocesso?
Não sei responder. Mas posso dizer que não é um processo brasileiro. É algo que tem acontecido no mundo. Grupos que estudam índices de democracia dizem que houve uma queda inclusive em países como os EUA e Inglaterra. Ninguém sabe explicar porque isso está acontecendo. Tem gente que acha que a democracia chegou em um ponto em que os autoritários quiseram voltar ao comando. O Brasil pega um pouco essa onda querendo controlar questões de cunho cultural por conta de nós não termos ainda uma cultura da liberdade. Aqui todo mundo apoia a liberdade de expressão desde que ela não lhe atinja.
Qual o papel dos políticos neste retrocesso?
Isso começa com os próprios políticos. Temos aqueles que sempre defenderam a liberdade de expressão até que chegaram ao poder e acabam jogando a sociedade contra quem fala mal dele. Quantas vezes ouvimos políticos dizendo que a imprensa mente, que a mídia produz fake news? É um embate que o Trump está tendo nos EUA. Quando ele acusa o The New York Times ou o Washington Post de fazer fake news é porque ele não está aceitando que aquele notícia negativa para ele é real.
Recentemente jornalistas no exercício da profissão foram alvos de ataques de grupos ou políticos. Isso é uma ameaça à liberdade de expressão?
Tenho certeza que sim. Um repórter da Folha de S. Paulo e com outra da Rádio CBN foram taxados como ativistas de extrema esquerda porque falaram sobre ações da Prefeitura de São Paulo. Estamos voltando ao momento mais tosco da censura na ditadura. Temos um movimento como o MBL (Movimento Brasil Livre) formado por jovens que se dizem liberais propondo este tipo de atitude e do outro lado um ativismo que não é jornalismo e denigre a imagem de tudo o que vem da grande imprensa.
A imprensa tradicional tem alguma responsabilidade nisso?
O grande problema do jornalismo tradicional hoje é querer concorrer com o tempo real. A ânsia de publicar rápido gerou um aumento de erros. Estão querendo concorrer com o cidadão que vai lá e fotografa com o celular. Mas até por causa disso a imprensa também está olhando para dentro, fazendo um mea culpa e se perguntando: qual é o meu diferencial? A imprensa tem CNPJ, endereço, um corpo de jornalistas e credibilidade. Não pode jogar isso tudo fora para concorrer com o MBL ou os Jornalistas Livres. Houve um momento mais grave até por questões econômicas mas já tem uma onda nova. Os veículos tradicionais estão muito mais fortalecidos neste ambiente.
Qual sua opinião sobre a Lei do Esquecimento em discussão no Supremo Tribunal Federal.
Sou totalmente contrária a qualquer medida neste sentido. O marco legal brasileiro já garante o direito das pessoas que querem ter seus nomes e histórias protegidos. Da forma como foi colocada a Lei do Esquecimento permitiria uma revisão da história. As pessoas poderiam esconder tudo o que acham negativo sobre si mesmas. Isso inviabilizaria a pesquisa histórica.
Existe algum precedente ou outro momento na história brasileira parecido com o que estamos vivendo hoje?
Não necessariamente parecido até porque o ambiente que vivemos hoje é de total liberdade. E a liberdade está sendo contestada não pelo Estado mas pela própria sociedade. É diferente da época da ditadura em que o governo restringia a liberdade. Um exemplo é a exposição “Queermuseu”. Antes a ameaça vinha de um único foco e hoje ela está dispersa. É diferente de tudo aquilo vivemos e muito mais complexo.