Embora diversos motivos tenham paralisado a cultura – e o cinema, em particular -, em 2019, o resíduo da produção dos últimos anos tem garantido ao País participação destacada em grandes eventos planetários. Em fevereiro, havia 19 filmes brasileiros distribuídos entre as várias seções do Festival de Berlim. Em maio, na seleção de Cannes, o festival online distribuiu-se em parcerias através do mundo e também tinha um representante do Brasil – Casa de Antiguidades, de João Paulo Miranda. Ontem, Veneza anunciou sua seleção para o 77º festival e de novo tem brasileiro na parada.
O documentário Narciso em Férias, de Renato Terra e Ricardo Calil, foi selecionado para passar, fora de concurso. Aquele momento em que Caetano Veloso foi preso pela ditadura militar, em 1968. Logo em seguida, veio o exílio dele e de Gil em Londres. Como coprodutor associado – via Videofilmes -, João Moreira Salles reflete: "A beleza do filme está na maneira como Caetano, hoje com 77 anos, é capaz de nos levar de volta àquela cela para nos fazer compartilhar a impotência do rapaz preso. A simplicidade da encenação – um homem sentado de pernas cruzadas diante de uma parede de concreto, nada mais – dá voz ao essencial, uma escolha ao mesmo tempo estética e moral." E Calil: "Estamos honrados de iniciar a trajetória do filme pelo Festival de Veneza, que é ao mesmo tempo o primeiro festival de cinema do mundo e o primeiro que será presencial, no mundo pós-pandemia. É um evento histórico que pode apontar como será o cinema nessa nova realidade."
É realmente a grande novidade – a Mostra dArte Cinematográfica de Veneza será presencial, de 2 a 12 de setembro, mas com rígidos protocolos de segurança.
Convidados, por enquanto, só italianos. "Seria maravilhoso ir, seria maravilhoso se o Caetano fosse, mas teremos de esperar pelo que vai ocorrer em agosto. Pela forma como o governo geriu a crise sanitária, o Brasil virou mau exemplo e o povo brasileiro é muito rejeitado em todo o mundo, na atualidade. É pouco provável que isso mude até setembro", diz Calil.
Com crédito de codiretor, ele se coloca como diretor convidado. "É nosso terceiro filme conjunto, do Renato e meu. E esse começou com ele." Ambos integram a equipe de roteiristas do programa Conversa com Bial, na Globo. Ocorreu de Caetano ser convidado do programa. Terra, responsável pela pesquisa, descobriu imagens de Caetano com o filho Moreno ainda bebê que encantaram o artista. Tiveram uma animada conversa de bastidores.
Como os deuses do cinema às vezes promovem encontros para ajudar, na sequência Caetano e Terra encontraram-se na ponte aérea. Sentaram juntos, seguiram conversando. Mais um pouco e Terra foi chamado para um churrasco na casa de amigos. Chegou Caetano. "O curioso é que estávamos vestindo camisas iguais. Caetano bateu o olho e só então se lembrou que eu, mais o Calil, já o havíamos entrevistado para o documentário Uma Noite em 67, sobre o histórico festival da Record em que ele concorreu com Alegria, Alegria. Não demorou muito e ele recebeu um telefonema de Paula Lavigne, mulher de Caetano.
"Pode vir aqui em casa? Agora?" Ele foi. Era no Brasil da polarização, na fase que levou à eleição de Jair Bolsonaro.
Caetano queria muito fazer "alguma coisa" sobre a sua prisão em 68. Ele já abordara o tema no livro Verdade Tropical (Companhia das Letras), e o capítulo chamava-se, também, Narciso em Férias. Daquele encontro, nasceu o projeto. Ele incorporou Calil. Filmaram uma longa entrevista com Caetano.
"Foi tudo muito simples, e forte. Descobrimos que só a fala de Caetano, seus olhares e gestos, era suficiente. Ficar desmontando aquele material tão potente só para mostrar imagens de época reduziria o impacto. Como consequência, o que o filme tem de época é pouco, mas uma coisa é muito importante. Não vou dizer o que é para não dar spoiler", brinca Calil. E Terra: "Trabalhei na Videofilmes com o João (Moreira Salles), com Eduardo Coutinho. João foi um mestre para mim. Vi-o dando aula, mas, até quando éramos só os dois, eu estava ali na condição do discípulo, aprendendo com ele.
Com o João e o Coutinho, aprendi que documentário não tem de ser didático, tem de ser uma experiência compartilhada. Foi o que buscamos, Calil e eu. Creio que alcançamos." O júri de Veneza será presidido pela atriz Cate Blanchett e a seleção destaca-se pela expressiva participação feminina. Entre os que vão concorrer ao Leão de Ouro, estará o novo filme de Sofia Coppola, A-24 Apple.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>