As câmeras de Marco Abujamra e Viviane DÁvilla – diretor e codiretora de Todas as Melodias, documentário selecionado para a 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – fecham bem perto do rosto de seus entrevistados. Todos eles falam sobre Luiz Melodia, o cantor do Estácio, no Rio, vórtice das influências da música negra americana com a música popular brasileira, criador de clássicos como Pérola Negra e Juventude Transviada. A proximidade da câmera e o diafragma aberto contribuem para uma variação de foco – uma metáfora, pode-se dizer, entre a vida e a morte, entre "o coração do Brasil" e o buraco no peito de Moa do Katendê.
O compositor e mestre baiano morreu assassinado em outubro de 2018 por motivos políticos; Luiz Melodia havia partido mais de um ano antes, e um poema de Arnaldo Antunes, entrevistado no filme, liga de passagem no documentário os dois universos.
Fato é que Abujamra teve a ideia do documentário, realizado em parceria com o Canal Curta e que também tem Mariana Marinha na codireção, ainda antes da morte de Melodia, mas seu padecimento por um mieloma (câncer na medula) adiou o projeto, na época ainda em fase inicial. Meses depois, o diretor percebeu que teria que fazer um filme diferente do que imaginava (bastante focado nas conversas com o músico; não foi possível).
A personagem que dá liga a Todas as Melodias é então Jane Reis, empresária e viúva de Melodia, que compartilha com emoção as lembranças do marido. Mas o documentário não é uma biografia.
Procura, sim, aproximar-se do universo de Luiz Melodia, utilizando performances gravadas, depoimentos antigos do músico, e entrevistas novas com colegas de diferentes gerações.
Zezé Motta conta que uma repórter um dia disse que ela era quem entendia melhor o espírito de Melodia na música, por ser quem mais o gravou. "Eu respondi: olha, eu não entendo muito bem não, mas eu gosto!." Céu diz considerá-lo o maior cantor do Brasil, "um cantor de soul, mas brasileiríssimo". Arnaldo Antunes afirma que o País ainda precisa alcançar a grandeza de Melodia.
Em uma conversa gravada no Circo Voador, entre o início dos anos 1970 e o início dos anos 1980, o poeta Waly Salomão – responsável por apresentar Melodia a Gal Costa, que em seguida gravaria Pérola Negra do então desconhecido compositor – exerce sua retórica inconfundível para "defender" as letras do poeta, inicialmente consideradas incompreensíveis. Waly conta uma história de que Melodia sabia saídas que as forças policiais, investidas na missão de fechar os caminhos nas favelas da região, desconheciam completamente. Essas saídas estariam também nas letras.
"O filme fala muito sobre a Jane e sobre o casal", comenta o diretor Marco Abujamra, autor do premiado Jards Macalé – Um Morcego na Porta Principal (2008), entre outros. "Eu estava disposto a não gravar nenhum depoimento, mas com a morte dele, tivemos que repensar. Tanto que são poucos, tudo meio tangenciando. A ideia era trazer o universo do Melodia para o filme. Sem ele, isso fica um pouco limitado. Não dá nem para dizer que a Jane foi um personagem surpreendente, ela é ótima. Se parar para olhar, o filme é costurado por ela."
O diretor explica que seu processo criativo passa também por procurar pontos de intersecção seus com os retratados nos documentários (além de Macalé, Paulo Autran e Mário Lago), longe de qualquer pretensão biográfica. "Queria me inspirar muito no Melodia, para trazer essa coisa menos explicativa Não teria nada a ver contar tudo direitinho da vida dele, isso está no Wikipedia. Eu estava muito mais interessado em fazer um filme sobre o comportamento dele e sobre música de uma maneira mais geral, usando conexões mais subjetivas."
Um exemplo dessa busca é justamente a cena inicial, em que Melodia aparece numa performance, de roupa preta e cabelo curto, mas não há som: retirar a música, ali, faz o espectador se atentar aos movimentos corporais do artista, um dançarino reconhecido quando vivo.
Não há nenhuma "porta de entrada" melhor para Luiz Melodia do que suas próprias canções, porém, e várias delas estão no filme – um sensível retrato do poeta, "bem junto ao passo / do passista da escola de samba / do Largo do Estácio".
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>