Uma cidade da região da Lombardia, no norte da Itália, é o pesadelo dos que defendem relaxar a quarentena contra a covid-19 em benefício da economia. Trata-se de Bérgamo, a Wuhan italiana, de onde o Exército retirou em comboio, na semana passada, dezenas de caixões com corpos para serem cremados em outros lugares, pois a cidade – cujo sistema de saúde entrou em colapso – não consegue lidar mais nem com seus mortos.
No boletim do Ministério da Saúde divulgado nesta quarta-feira, a Província de Bérgamo, de 1,1 milhão de habitantes, tinha 7.272 casos de contágio – um dia antes, eram 6.728. Os mortos eram 1.328, 60 a mais do que na terça-feira. Na Itália, já são quase 75 mil casos com 7,5 mil mortes.
O desastre de Bérgamo começou a tomar corpo no fim de fevereiro, quando os primeiros casos de italianos contaminados pelo coronavírus surgiram no país. Os habitantes da província continuaram tocando a vida.
No dia 23 de fevereiro, 48 mil torcedores da Atalanta, time da cidade, foram a Milão ver a vitória por 4 a 1 contra o Valencia, da Espanha, pela Liga dos Campeões. Foi uma "bomba biológica", diria mais tarde o prefeito Giorgio Gori. No dia 27, a Confederação das Indústrias de Bérgamo, lançou um manifesto dizendo que tudo seguia normal. "Bérgamo está funcionando", dizia o vídeo.
Era um recado para os parceiros internacionais. Naquele momento, perto dali, na cidade de Codogno, o pesquisador Mattia, de 38 anos, seguia internado na UTI. Primeiro paciente da Itália diagnosticado com covid-19, ele estava em estado grave. Mesmo assim, as fábricas e o comércio da região permaneciam abertos – a cidade tinha então 103 casos. O próprio primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, dizia na ocasião que fechar as fronteiras do país "causaria danos econômicos irreversíveis e não era praticável". Todos tinham uma certeza: o país não podia parar. A Itália tinha 650 infectados.
Em Milão, capital da região, estava o cientista e farmacologista Silvio Garattini, de 91 anos, presidente do Instituto de Pesquisas Farmacológicas Mario Negri. Nascido em Bérgamo, Garattini dizia que era melhor tomar medidas drásticas do que se arrepender depois. Mas era necessário que as ações fossem aceitas pela população como um sacrifício que devia ser feito, pois enfrentavam um desafio desconhecido: o coronavírus.
Havia dois dias, em 25 de fevereiro, que o governo de Conte havia tomado as primeiras medidas para barrar a doença na Lombardia com o objetivo de conter o surto em 11 cidades: cancelava eventos, restringia a circulação e fechava 5,5 mil escolas por cinco dias, além de creches, teatros, cinemas e museus. Por fim, o Ministério da Saúde pedia às pessoas um "toque de recolher voluntário".
Em Bérgamo, os conselhos de Negri e do ministério caíram em ouvidos moucos. "Foram cometidos erros demais e esses erros pesam", contou Garattini à TV Rai3. "Infelizmente, aqui foi privilegiada a proteção da atividade econômica em relação à tutela da saúde."
Dezenas de empresas da região têm relação com a China. A cidade ficou fora da zona de exclusão inicial. Então, os casos começaram a explodir. E o mundo reagiu. Em 1.º de março, os clientes estrangeiros passaram a rejeitar os produtos com receio de serem postos em quarentena em seus países.
Em 8 de março, Conte anunciou a quarentena na Lombardia e 11 províncias. Havia então 230 mortes na Itália e 5.883 casos de covid-19. No dia seguinte, ele estendeu a medida para toda a Itália. Dez dias depois, chegava a Bérgamo um comboio de 15 caminhões do Exército. Era a primeira das missões para retirar corpos da cidade e cremá-los em outros locais.
Ontem, os militares entraram na cidade vizinha de Seriate. Retiraram mais 45 corpos. Ao mesmo tempo, um grupo de 30 médicos russos chegou a Bérgamo para ajudar os italianos. "Em Bérgamo, houve grave subavaliação", conclui Garattini. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>