A Justiça decidiu: os cinco policiais da guarnição da Rota 66 eram inocentes. Eles foram julgados em 1981, na 1.ª Auditoria do Tribunal de Justiça Militar (TJM), por quatro oficiais da PM e um juiz auditor. Onze anos depois, o veredicto transitou em julgado na 2.ª instância do TJM. Chegava ao fim uma briga judicial de quase 20 anos entre a defesa e a acusação. Para a Justiça, os militares agiram no estrito cumprimento do dever legal.
“A 66 foi uma ocorrência de viatura da Rota que foi absolvida”, disse o vereador e ex-capitão da Rota, Roberval Conte Lopes. Mas o que aconteceu naquela madrugada de 23 de abril de 1975? Além do relato do ex-secretário Erasmo Dias, o Estado procurou testemunhas, parentes, promotores e analisou documentos. Também buscou os policiais envolvidos. Por meio do advogado Celso Vendramini, um dos integrantes da guarnição disse não ao pedido de entrevista. Vendramini tem no currículo a absolvição de mais de uma centena de PMs acusados de assassinatos – ele próprio trabalhou na Rota antes de optar pela advocacia. “O PM tem de ser juiz, promotor e advogado ao mesmo tempo. Você tem de agir em questão de segundos e corre o risco de cometer um erro.”
Naquela madrugada, a equipe 13 da Rota patrulhava os Jardins quando passou pela Rua João Clemente. Havia três vultos em torno de um Puma estacionado na garagem da casa número 46. Eram Francisco Nogueira Noronha, o Chiquinho, de 17 anos, José Augusto Diniz Junqueira, o Gugu, de 19, e Carlos Ignácio Rodrigues Medeiros, o Pancho, de 22.
Os três tentavam furtar o toca-fitas do carro de Roberto de Carvalho Veras, de 22 anos, que conheciam do Club Paulistano. A Veraneio da Rota passou, deu marcha a ré. Os rapazes perceberam. Correram e entraram no Fusca azul de Chiquinho, que arrancou. Começava a perseguição. Na Avenida 9 de Julho, a Rota 13 perdeu o Fusca, mas outra equipe avistou os rapazes: era a Rota 66.
Os policiais se colocaram para fora da viatura e despejaram as balas de suas submetralhadoras na direção dos fugitivos. O Fusca foi perfurado pelos tiros. As balas que os militares disseram que os jovens dispararam contra a viatura não penetraram a lataria da Veraneio. A fuga continuou pela Rua Argentina, quando outra rajada atingiu o Fusca. O carro bateu em um poste. Gugu, Chiquinho e Pancho foram mortos pelos PMs. A perícia constataria em Chiquinho um ferimento de bala na axila, que só poderia ter sido causado se ele estivesse com as mãos para cima. Os PMs levaram os rapazes para o Hospital das Clínicas (HC) e, pelo rádio, foram informados de que não havia queixa de roubo do Fusca. O caso parecia sair dos trilhos.
Mãe
A alguns quilômetros dali, a mãe de Chiquinho acordou. Eram 4 horas, quando seu filho mais velho, José Noronha Neto, a encontrou na sala do apartamento. “Mãe, o que está acontecendo?”, perguntou o rapaz. “O Chico não voltou ainda”, disse ela. Por volta das 5 horas, tocou o telefone da casa. Era um repórter. “Tal carro, assim e assim, é de vocês?”, contou Noronha Neto. “E minha mãe falou: É”, continuou. “Então venham ao Hospital das Clínicas, porque houve um acidente.” Pouco depois, era a polícia que ligava para o apartamento. Queriam saber de quem era o Fusca. “Aí eles viram que fizeram uma burrada”, afirmou Noronha Neto. Ele foi com o pai ao hospital. Foram mandados para o Instituto Médico-Legal (IML). Lá estavam Chiquinho e os amigos. O pai deixou o prédio em silêncio. Abaixou a cabeça e disse: “Meu filho se foi”. Quando voltaram para casa, a mãe, Lia Maria, ficou desesperada.
A Polícia Civil fez a perícia. O IML colheu amostras nas mãos dos rapazes para verificar se eles atiraram – cada vez que alguém usa uma arma de fogo, fragmentos de pólvora e de metais se depositam na mão do atirador. A investigação começava. O Departamento de Ordem Política e Social (Dops) passou a apurar a origem das armas que os PMs disseram ter encontrado com os jovens – dois revólveres calibre 22 e um revólver calibre 32, além de uma porção de maconha. As famílias contrataram o criminalista Paulo José da Costa para acompanhar o caso. Em 25 de abril surgiu a primeira testemunha: era a empregada doméstica Lygia de Almeida Queiroz, de 55 anos. “Quando acordei, despertada pelos tiros, ouvi um grito que me representou estas palavras: Não atire!, em tom de desespero”, contou.
Nos dias seguintes, o Dops fez uma descoberta. Ao reconstituir a trajetória do revólver calibre 22 de número 594.326, que supostamente foi usado pelos rapazes, constatou que o último dono da arma havia sido o operador de máquinas Eurides Felizardo Pinto. Ele contou que, em março de 1975, fora abordado em São Paulo por policiais. Estava com um amigo e levava o revólver. Os PMs lhe deram a opção: deixar a arma com eles ou ir para a delegacia. Eurides decidiu perder o revólver. Segundo ele, os PMs eram da Rota.
Os laudos mostraram que os corpos dos jovens tinham 23 perfurações – o Fusca, 21. “A perícia técnica demonstrou que os rapazes não atiraram”, disse o procurador de Justiça João Benedito de Azevedo Marques, que atuou no caso. A acusação tinha certeza de que o júri condenaria os policiais, mesmo que, durante as investigações, uma testemunha tenha dito ter visto os amigos atirando. Em 1979, o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou o processo na Justiça comum e determinou que o caso fosse julgado na Justiça Militar. Diante disso, a defesa jogou a toalha. Sabia que não ganharia mais. Em 24 de junho de 1981, os PMs foram absolvidos.
Fundador
O tenente-coronel Salvador DAquino comandava a Rota em 1975. Na época, à noite, os PMs da unidade eram chefiados por um tenente que devia cumprir uma ordem do coronel: avisá-lo, não importa a hora, sobre todo caso grave que acontecesse. DAquino queria sempre ser o primeiro a saber. E assim foi, exceto na madrugada do caso Rota 66. Ele só foi informado na manhã do dia seguinte.
O coronel jamais perdoou o que se passou naquela noite. Em 2004, contou que mandou prender por dois dias e depois transferiu o tenente que não o avisou. “Ele quebrou minha confiança.” Fundador da Rota, DAquino morreu em 2005 repetindo que nada de errado acontecera no caso. “Interrogamos a guarnição várias vezes, pressionamos, e eles mantiveram o depoimento.” Sua entrevista, como a de Erasmo Dias, permaneceu inédita porque fazia parte da pesquisa para o livro A Casa da Vovó, publicado em 2014. As informações são do jornal O Estado de S.Paulo.