Promotores do Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente (Gaema) do Ministério Público Estadual (MPE) criticaram a proposta de inclusão definitiva do volume morto na capacidade operacional do Sistema Cantareira. A medida foi defendida pelo presidente da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), Jerson Kelman.
“O Ministério Público é integralmente contrário à incorporação do volume morto. A adoção dessa estratégia aumentaria ainda mais o risco de desabastecimento generalizado”, afirma a promotora Alexandra Faccioli Martins, do Gaema de Piracicaba, no interior paulista. “Isso tornaria o volume morto passível de utilização em situação de normalidade, quando na verdade deve ser uma medida extremamente excepcional”, completa.
Em entrevista publicada neste domingo, 21, pelo jornal O Estado de S. Paulo, Kelman afirmou que as duas cotas do volume morto (água que fica abaixo do nível dos túneis de captação) devem ser incorporadas definitivamente ao sistema, o que ampliaria a capacidade do Cantareira em 29,3%. “Não há nenhuma razão para você considerar o tamanho do seu reservatório menor do que na prática você pode usar”, disse.
A inclusão do volume morto no sistema poderia ajudar a Sabesp a manter os limites pré-crise de retirada de água do sistema na renovação da outorga do Cantareira, adiada para maio de 2017, e até evitar restrição na captação no caso de uma nova seca. Hoje, a Sabesp retira do manancial 19 mil litros por segundo. Antes da crise, eram até 33 mil l/s. Na conta defendida por Kelman, o Cantareira tem nesta segunda-feira 38,8% da capacidade. Sem a reserva, tem 20,9%.
“A utilização do volume morto não alterou e não poderia alterar o sistema equivalente (formado pelas maiores represas do Cantareira). Incorporar o volume morto ao sistema fragilizará a segurança na operação do sistema e aumentará o risco de desabastecimento”, criticou o promotor Ricardo Manuel Castro, do Gaema do Alto Tietê, na Grande São Paulo. Ele afirma que o MPE já havia recomendado à Agência Nacional de Águas (ANA) e ao Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), órgãos reguladores do manancial, a revogação da resolução que autorizou o uso da segunda cota do volume morto, em novembro de 2014, depois que esse volume foi recuperado, em fevereiro do ano passado.
“Nós temos buscado durante a discussão para renovação da outorga do Cantareira a adoção de novas regras operacionais que garantam a antecipação de ações restritivas que evitem que uma crise dessa proporção volte a ocorrer. Seria um retrocesso pensar nessa possibilidade”, afirma Alexandra.
Suspensão
À reportagem, o presidente da ANA, Vicente Andreu, afirmou ser contra a proposta de Kelman e disse que já estudava cancelar a autorização que permitiu o uso emergencial da reserva profunda entre 2014 e 2015. “Qualquer regra de operação de um reservatório deve ser feita para gerar segurança hídrica. Não pode estar vinculada a interesses comerciais e financeiros de usuários, como a Sabesp”, disse Andreu.
Segundo ele, essa proposta já foi descartada em 2015 em discussão com o DAEE. Andreu disse ainda que a utilização do volume morto, que durou 19 meses, decorre de autorização extraordinária que deve ser cancelada quando todos os reservatórios atingirem o nível mínimo de 20% do volume normal – o pior deles tem 15,5%.
O professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em recursos hídricos Pedro Côrtes lembra que na crise hídrica de 2004 o nível do Cantareira também ficou abaixo de zero e as autoridades depois acrescentaram 22% da capacidade ao sistema. Na ocasião, contudo, o volume acrescido ainda ficava acima dos túneis de captação. A medida decorreu de uma atualização das medidas das represas feita para a renovação da outorga, ocorrida naquela ano.
“Esse incorporação feita 12 anos atrás não impediu uma nova crise, ainda mais grave. Não adianta aumentar o volume do reservatório como se isso fosse resolver um problema de gestão. O volume morto é uma reserva estratégica que deve ser usada em casos excepcionais porque quando você entra na reserva, há um rebaixamento muito grande do lençol freático e a recomposição dos reservatórios fica muito mais lenta por causa do efeito esponja, como vimos nessa crise”, explicou Côrtes.
Válido
Já Francisco Lahoz, secretário-executivo do Consórcio PCJ, que representa empresas e municípios da região de Campinas que também dependem do Cantareira, afirma que o volume morto não pode ser descartado. “Nenhuma gota de água pode ser desprezada. Todas as gotas do volume estratégico devem ser consideradas, não importa a nomenclatura. O importante é que ela existe”, afirma.
Lahoz defende que essa possibilidade seja debatida na renovação da outorga do Cantareira, prevista para maio de 2017. “Fomos surpreendidos com a estiagem mais grave da história e tivemos de fazer recalques para utilizar mais água. Passamos por testes muito delicadas e qualquer gota passou a ter importância vital para a nossa sobrevivência. Diria que hoje na nossa contabilidade essa água (volume morto) já está incorporada”.
Com o morto
Nesta segunda-feira, 22, a Sabesp divulgou que o volume operacional de água armazenada nos seis sistemas que abastecem a Grande São Paulo atingiu 50,5% da capacidade total, o que representa 943 bilhões de litros. O cálculo inclui as duas cotas do volume morto do Cantareira. Há um ano, em 22 de fevereiro de 2015, destaca a Sabesp, esse volume era de 409 bilhões de litros, ou 22% do total. Isso significa que o estoque de água nas represas mais do que dobrou em um ano.
“O período de chuvas ainda deve se estender até março, o que pode garantir um reforço ainda maior para as represas antes de começar o período de estiagem. Só para se ter uma ideia, no início do período seco do ano passado, no começo do mês de abril, o volume operacional era de aproximadamente 590 bilhões de litros, cerca de 32% do total”, afirma a companhia. “Essa recuperação dos mananciais tem possibilitado que a Sabesp vá gradualmente ampliando a produção de água ofertada à Grande São Paulo”, completa.
Segundo dados da empresa, a produção atual está próxima de 60 mil litros por segundo para atender cerca de 20 milhões de pessoas na Grande São Paulo. Antes da seca, em 2014, a produção era de cerca de 70 mil l/s e no auge da crise caiu para pouco mais de 50 mil l/s. Com a melhora da situação, a Sabesp diminuiu desde dezembro o racionamento feito por meio da redução da pressão na rede. Hoje, as manobras estão restritas ao período noturno na maior parte da cidade.