De uma forma totalmente inesperada, cientistas brasileiros descobriram uma nova espécie de morcego e corrigiram um erro científico que se propagou por mais de um século. A nova espécie foi identificada quando os pesquisadores realizavam, em coleções de museus, estudos sobre o gênero Lonchophylla, de morcegos que se alimentam de néctar. Batizado de Lonchophylla inexpectata – em alusão ao caráter inesperado da descoberta -, o “novo” morcego foi coletado pela primeira vez em no início do século 20, mas acabou sendo registrado, na época, como pertencente à espécie Lonchophylla mordax.
O equívoco perdurou até a semana passada, quando Ricardo Moratelli, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Mata Atlântica e Daniela Dias, da Fiocruz, descreveram a nova espécie na revista científica ZooKeys.
Ao avaliar os espécimes reconhecidos no Brasil como representativos do gênero Lonchophylla, os cientistas perceberam que alguns deles tinham o pelo mais claro na região ventral. Eles concluíram que essa característica – até então considerada uma mera variação da coloração – era uma característica típica de uma nova espécie. Um exame mais minucioso do novo animal revelou que a morfologia de seu crânio e dos seus dentes não eram consistentes com as do L. Mordax.
“Estávamos conduzindo um projeto bastante normal na nossa área, de reavaliação da diversidade de espécies dentro do gênero Lonchophylla. Desde 1908, os pesquisadores brasileiros acreditavam que essa espécie de ventre claro era o L. mordax. Era justamente esse ventre claro que nós usávamos para reconhecer a espécie em campo”, disse Moratelli à reportagem.
Durante o processo de revisão, no entanto, os cientistas perceberam que o morcego de ventre claro tinha características que não eram consistentes com a descrição do L. mordax. Eles resolveram então fazer algo que nenhum outro pesquisador havia feito: estudar o material original que fundamentou a classificação, em 1905. “Era totalmente diferente. Tudo o que chamávamos de L. mordax até hoje, era na verdade outra espécie”, declarou.
Segundo Moratelli, o L. mordax foi coletado pela primeira vez em 1905, pelo pesquisador inglês Oldfield Thomas, em Lamarão, em uma região do agreste da Bahia. O material foi levado para o British Museum, na Inglaterra. Três anos depois, um coletor profissional do Museu de Zoologia da USP foi a uma localidade que fica a 500 quilômetros de Lamarão – já no sertão e não no agreste – e coletou alguns indivíduos de ventre claro. Esse material foi levado para São Paulo e depois distribuído para mais alguns museus do mundo. Com o conhecimento disponível na época, os pesquisadores do museu da USP se basearam na proximidade geográfica e morfológica do espécime registrado em 1905 e classificaram o novo morcego como L. mordax. Foi o início de uma confusão de mais de um século.
“A partir daí, todos os pesquisadores do Brasil assumiram que o L. mordax era aquela espécie de ventre claro que correspondia ao material coletado no sertão. Mas, quando vi os exemplares originais coletados no agreste, percebi que o verdadeiro L. mordax era outro animal, com ventre castanho”, explicou Moratelli.
Desde então, a descrição de 1908 serviu de base para diversos outros estudos sobre o L. mordax – em 1926 e 1946, por exemplo -, sempre propagando o equívoco. O resultado disso, segundo Moratelli, é que agora os cientistas conhecem razoavelmente bem a “nova” espécie, L. inexpectata, mas não sabem quase nada sobre o L. mordax, descoberto em 1905.
“Hoje sabemos que o L. inexpectata está no sertão, em uma região um pouco mais ampla e o L. mordax ocorre no agreste, em uma região bem mais restrita. Nossa ideia agora é realizar estudos sobre a distribuição dessas espécies. A distribuição e a biologia do gênero Lonchophylla no Brasil é um verdadeiro quebra-cabeças. Sabemos pouco sobre sua alimentação, os abrigos que usam e assim por diante”, disse o cientista.
Não foi a primeira vez que Moratelli descobriu uma nova espécie de morcegos e desfez confusões taxonômicas. Em 2013, em colaboração com Daniela Dias e Carlos Eduardo Esbérard, ele descreveu uma nova espécie de morcego que se alimenta de néctar, o Lonchophylla peracchii. O animal, até então, era Lonchophylla bokermanni, que tinha presença conhecida no cerrado da Serra do Espinhaço e na Mata Atlântica do Rio de Janeiro – em especial nas ilhas da Costa Verde.
“Chegamos à conclusão que as populações da Mata Atlântica eram uma nova espécie – L. peracchii – e o L. bokermanni ocorria apenas no cerrado. Depois dessa descoberta, uma espécie considerada comum no Sudeste do Brasil passou a ser vista como uma das mais ameaçadas: o L. bokermanni ficou restrito ao cerrado”, afirmou Moratelli.