A forte correção nos mercados acionários chineses pode ser reflexo de uma desaceleração mais ampla do gigante asiático. Nesse cenário, um dos principais riscos de contágio para a economia global e em especial para exportadores de commodities, como o Brasil, é que o governo da China se veja forçado a desvalorizar sua moeda, afetando os preços de insumos básicos.
A preocupação é que a queda das bolsas reflita um cenário de lucros menores das empresas e também acabe provocando falências de algumas instituições financeiras menores que estão mais expostas, afetando assim a atividade econômica. Para o estrategista global do Macquarie Bank, Thierry Wizman, os múltiplos de mercado atingidos pelas bolsas chinesas antes da atual correção certamente sugerem que elas estavam em território de bolha. Essa situação foi estimulada pela promessa de mais liquidez vinda do Banco do Povo da China (PBoC, na sigla em inglês), à medida que a economia dava sinais de que não iria atingir as metas de crescimento para este ano.
“Isso tem a ver com o fato de que, apesar das recentes injeções de liquidez, a economia não acelerou. É possível ver isso em outras variáveis, como os preços do minério de ferro, a cotação do dólar australiano, etc”, comenta Wizman. Para o estrategista da Post-Bric Asset Management, Marcelo Ribeiro, os desdobramentos no mercado acionário também são parte de um movimento mais amplo de estouro da bolha chinesa. “O governo tem tentado fornecer estímulos monetários, mas em vez de esse dinheiro ter ido para a produção, ele foi para especular em bolsa e outros instrumentos. Muitas empresas estavam lucrando mais com ações do que com sua operação, assim como aconteceu com a bolha do Japão (no final dos anos 1980) ou do Nasdaq (também chamada de bolha do Ponto Com, no início dos anos 2000)”, afirma.
O especialista em direito bancário, mercado de capitais e sócio do escritório Leite, Tosto e Barros Advogados, Flávio Maldonado, diz que é difícil determinar se uma bolha existe e se está prestes a estourar. “Algumas vezes ouvimos falar de bolhas e elas não se concretizaram. O fato é que nós estamos vendo uma forte correção de preços nos mercados chineses”, aponta. Ele lembra que, desde a crise financeira internacional de 2009, a noção de deixar o mercado se ajustar livremente perdeu apoio. “A instituição que atua como emprestador de última instância precisa corrigir os desvios, senão a crise é muito dramática”.
Contágio Wizman, do Macquarie, lembra que os mercados chineses de renda variável são muito fechados para os investidores estrangeiros, mas acredita que o atual movimento pode ter impactos em outras regiões por canais indiretos, via queda na confiança de empresas e consumidores, que assim afetaria o crescimento econômico. “O Brasil e outros mercados emergentes definitivamente vão sofrer, especialmente se a China for forçada a enfraquecer sua moeda”, explica. Essa é a mesma preocupação de Ribeiro, da gestora Post-Bric.
Ele afirma que as exportações chinesas apresentam queda real na comparação anual, em função do relaxamento quantitativo na zona do euro, que torna os produtos europeus mais competitivos, e também devido ao atrelamento do yuan ao dólar. Com a valorização da moeda norte-americana desde o fim do ano passado, a divisa chinesa também subiu, mesmo essa paridade sendo calculada diariamente pelo PBoC.
“Na medida em que a economia perde capacidade de exportação, cresce a pressão para que o governo desvalorize a moeda. Se isso acontecer, as commodities vão tomar um forte golpe e aí podemos dizer que a crise brasileira nem começou. Essa seria a mãe de todas as crises”, alerta Ribeiro. Em fevereiro, o Bank of America Merrill Lynch já tinha divulgado relatório afirmando que esse era o maior risco de cauda para este ano, já que reduziria o poder de compra dos chineses, “o que seria muito negativo para o já combalido setor de commodities”.
Para Ribeiro, o problema nos mercados chineses não é mais um “risco” para o Brasil, e sim “uma realidade”. Ele chama atenção para a forte queda de commodities como o cobre e o petróleo na semana passada. “Quando as commodities caem como aconteceu, a única explicação é China, não tem outro motivo”.
O executivo-chefe da boutique de investimentos Latam Access, Nilsson Strazzi, também afirma que o estouro da bolha chinesa teria impacto direto nas commodities e no Brasil. “O contágio é total, pois somos reféns das commodities”. Ele aponta que a queda nos preços das commodities já é maior que o efeito da desvalorização cambial, que poderia dar mais competitividade aos produtos brasileiros. Na opinião dele, a chance de o PBoC desvalorizar a moeda é grande. Entretanto, se isso levar a uma melhora nas perspectivas de crescimento, poderia acabar tendo um efeito líquido positivo nos preços das commodities.
Contexto
Desde meados de junho, os mercados acionários chineses caíram quase 30%, na mais intensa sequência de baixa desde 1992. Com isso, o valor de mercado das companhias listadas recuou cerca de US$ 2,5 trilhões, ou dez vezes o PIB da Grécia, para se ter uma noção. O movimento já é comparado com a quebra das bolsas norte-americanas em 1929 e as ações do governo chinês para tentar acalmar os investidores só alimentaram o pânico.
Apesar da queda atual, as bolsas chinesas ainda estão 80% acima dos níveis observados no meio do ano passado. Além disso, a fatia das empresas (taxa de free-float) que é listada no mercado acionário representa apenas um terço do PIB da China. Em economias desenvolvidas, o porcentual chega a superar 100% do PIB. Menos de 15% das economias das famílias estão investidas em ações, ou seja, a queda da bolsa tenderia a não afetar o consumo.
Os problemas nos mercados chineses também estão relacionados a questões regulatórias. Com o mercado muito alavancado, algumas corretoras aumentaram as exigências de margens e muitos participantes que haviam tomado empréstimos para comprar ações foram obrigados a vender seus papéis para cumprir as novas regras. Em uma tentativa de estancar a sangria, o governo adotou diversas medidas. As maiores corretoras do país anunciaram neste fim de semana um pacote de 120 bilhões de yuns para comprar ações, com apoio indireto do banco central, e uma meta de levar o índice Shanghai Composite para 4.500 pontos, do patamar atual de 3.730 pontos. Mas com um giro diário de quase 2 trilhões de yuans, o efeito positivo nos mercados durou apenas um dia.
Além disso, quase 30 empresas que tinham ofertas públicas iniciais de ações (IPOs, na sigla em inglês) foram incentivadas a adiar os planos. Outro expediente que tem sido usado são as interrupções de negociações com determinados papéis, solicitadas pelas próprias empresas. Mais de 700 companhias, de um total de aproximadamente 2,8 mil empresas listadas, já pediram para que as operações fossem suspensas, sendo quase 200 só esta semana.
A maioria desses pedidos de suspensão ocorreu em Shenzhen, mercado que é dominado pelas empresas de menor porte, as chamadas small caps. Diferentemente de outras grandes bolsas, que são dominadas por gestores profissionais, na China os investidores de varejo – muitas vezes pouco instruídos – representam quase 85%. Eles preferem as small caps, já que a negociação com as blue chips é controlada pelos grandes players. Entretanto, isso aumenta a volatilidade.