Um grupo de cientistas dos Estados Unidos, com participação brasileira, descobriu uma maneira engenhosa para rastrear a misteriosa vida dos grandes peixes da Amazônia, a fim de saber mais sobre os diversos ambientes por onde eles passam em suas longas rotas de migração.
Em um estudo publicado na terça-feira, 7, na revista científica digital Royal Society Open Science, os pesquisadores descrevem como conseguiram desvendar as trajetórias de milhares de quilômetros de peixes como o pirarucu (Arapaima gigas) a partir de análises químicas dos otólitos – estruturas calcárias que ficam no ouvido interno desses animais.
Segundo os autores do estudo, conhecer e estudar a biologia e os hábitos de migração dos peixes é fundamental para preservá-los. Mas a ciência sabe pouco sobre os peixes amazônicos, porque é difícil usar métodos de rastreamento convencionais na imensidão do maior sistema pluvial do mundo.
Nos sete milhões de quilômetros quadrados da bacia amazônica, alguns dos peixes chegam a se locomover por 3,2 mil quilômetros no curso de suas vidas, atravessando várias fronteiras internacionais. Nesse contexto, segundo os pesquisadores, o método convencional de marcação com etiquetas é extremamente ineficaz para rastrear os animais.
De acordo com um dos autores, o brasileiro Leandro Castello, professor da Universidade Virginia Tech (Estados Unidos), a análise química dos otólitos foi a saída para desvendar os percursos dos peixes e saber mais sobre sua biologia.
“Os otólitos são estruturas de calcário – tecnicamente são pedras – localizadas no ouvido interno dos peixes e cuja função é dar a eles a noção de equilíbrio. Essas estruturas crescem junto com os peixes e absorvem as características químicas das águas onde estão os animais em cada fase de seu desenvolvimento”, disse Castello ao Estado.
O estudo é parte da tese de doutorado de Ted Hermann, no Suny College de Ciência Ambiental e Silvicultura (ESF), em Syracuse (Estados Unidos). Além de Castello e Hermann, participaram do estudo Donald Stewart e Karin Limburg, ambos da ESF.
Segundo Castello, há várias décadas os otólitos são usados para determinar a idade e ritmo de crescimento dos peixes. Mas, no novo estudo, os cientistas usaram um método que faz a análise de uma grande quantidade de substâncias químicas nas várias camadas dos otólitos.
“Conforme passamos do centro do otólito à sua superfície, vamos do início da vida do peixe até sua idade mais avançada. O equipamento usado corta pequenos pedaços do otólito enquanto faz a análise química de sua composição. Com isso sabemos as características de seu habitat em cada fase da vida. O princípio é o mesmo dos anéis que se formam nas árvores à medida em que elas crescem”, explicou Castello.
História de vida
Usando o método, os cientistas descobriram, por exemplo, que o que acontece com a dourada (Brachyplathystoma flavicans) desde que ela faz sua desova nas cabeceiras da bacia amazônica. “Os ovos descem rio abaixo até chegar ao estuário. Ali, o peixe cresce até um ano e começa a migrar rio acima. Quando a dourara chega aos três anos, ela chega novamente à região da desova”, disse o cientista.
Segundo Castello, o rastreamento é possível porque a água de cada região tem uma composição química diferente, claramente reconhecível em cada camada do otólito. O curimatá (Prochilodus ssp), por exemplo, tem traços químicos característicos dos rios de “água branca” – que têm um tipo de água barrenta, como a do rio Solimões – e nos rios de “água preta”, que têm as águas escuras, como as do rio Negro.
“Uma das descobertas interessantes do estudo é que as amostras de curimatá estudadas, provenientes da região amazônica do Equador, tinham traços de poluição que provavelmente derivam da exploração de petróleo que está sendo feita naquele país. Imaginávamos que a poluição dessa atividade causasse danos à fauna, mas é a primeira evidência de um impacto real nos peixes”, disse Castello.
Exorbitante
Sem o novo método, segundo Castello, havia pouquíssimas maneiras para rastrear os animais. O método mais convencional é o de marcação e recaptura. Para aplicá-lo, seria preciso marcar algo como 50 mil peixes com uma anilha plástica. Depois, alguém precisaria capturar alguns desses animais marcados na cabeceira do rio, a cerca de 3 mil quilômetros de distância.
“Ninguém faz isso, porque o custo seria exorbitante e, em um ambiente tão imenso como a Amazônia, a probabilidade técnica de recuperar a informação é muito reduzida, quase nula”, disse o cientista.
Outra técnica possível seria a telemetria: o peixe é marcado com um equipamento que emite um sinal acústico ou de GPS. “Mas o investimento seria de US$ mil dólares para marcar cada peixe e mais US$ 5 mil para cada ano de dados de satélite. Seria preciso pagar por pelo menos três anos e torcer para que o peixe não fosse pescado nesse período”, explicou Castello.
Com a nova metodologia, não é preciso recuperar peixes marcados: basta abrir a cabeça do animal e extrair o otólito. A análise, no entanto, não é barata: a aquisição do equipamento não sai por menos de US$ 250 mil e cada dia de operação custa US$ 1 mil.
“Ainda assim, considerando que conseguimos analisar cinco ou seis peixes por dia, podemos dizer que o método não é apenas mais rápido, mas também muito mais barato que as alternativas convencionais”, afirmou.
Conservação. Segundo ele, o uso do método pode ser de grande ajuda para a conservação dos peixes na Amazônia. “Temos dezenas de projetos de construção de hidrelétricas na Amazônia. Se começarmos a a usar esse tipo de metodologia cada vez mais, poderemos ter informações melhores para descobrir onde seria possível construir as hidrelétricas causando o mínimo dano possível aos peixes”, declarou.
Com a viabilidade da nova metodologia comprovada pelo estudo, os cientistas já partiram para o próximo passo. Uma nova pesquisa, em fase final de análise de dados, terá foco no estudo dos bagres migradores da Amazônia, como a dourada, o filhote, ou piraíba (Brachyplathystoma filamentosum), o surubim (Pseudoplaystoma fasciatum) e outros. “Vamos fazer uma análise mais aprofundada da vida desses peixes”, disse.