"A gente não pode pensar que elas merecem menos". A frase de Tatiela Silveira, técnica da Ferroviária, atual campeã brasileira feminina indica a filosofia que tem guiado o clube do interior paulista há quase 20 anos e o modo como os seus gestores enxergam uma modalidade em que as mulheres já estiveram proibidas de praticar no País.
Fundada em 1950, a Associação Ferroviária de Esportes viveu seu apogeu no futebol masculino no fim dos anos 1960, quando conquistou o tricampeonato consecutivo do interior, também sendo semifinalista estadual na década de 1980, a mesma em que jogou na elite nacional. Mas é na equipe feminina em que se concentram os seus principais feitos e protagonismo.
Campeão da Libertadores em 2015, o clube é o único com dois títulos do Brasileirão Feminino, competição que começou a ser organizada pela CBF em 2013, com as conquistas de 2014 e 2019, a última delas já no contexto da exigência de que times da Série A masculina contem com uma equipe feminina.
Na Ferroviária, porém, isso não é uma obrigação, mas filosofia. Em 2001, em uma parceria com a Prefeitura de Araraquara, o clube passou a contar com uma equipe feminina, em investimento que não se restringe a um time profissional, englobando, desde o começo do modelo, as divisões de base.
"É um projeto longevo, próximo dos 20 anos, onde o trabalho de base sempre foi importante. Começa pelas escolinhas de Araraquara e vai evoluindo até a integração com o profissional, passando pelos campeonatos das diferentes categorias", afirma Carolina Vallim de Melo, a coordenadora do futebol feminino da Ferroviária e ex-goleira do São Paulo.
É a partir desse trabalho com jovens jogadoras que a Ferroviária consegue se manter competitiva mesmo tendo um orçamento inferior a gigantes do futebol nacional, como o Corinthians, seu adversário na final do Brasileirão do ano passado. Afinal, compensa a receita menor com a formação de atletas. "É um trabalho de muitos anos. Somos um clube formador. A gente precisa privilegiar o que é nosso", diz Tatiele.
Para isso, o clube conta com escolinhas em Araraquara para meninas de 8 a 12 anos. Além disso, possui times a partir do sub-14. A filosofia de jogo entre as categorias é semelhante, fortalecendo a integração que permite um aproveitamento maior de jovens atletas no elenco principal, provocando uma redução de custos. E auxiliares da equipe principal trabalham diretamente com times das categorias inferiores.
No total, o futebol feminino possui oito profissionais dedicados exclusivamente à modalidade. Mas o trabalho do departamento é integrado com o masculino, seja do profissional ou das divisões de base. "Temos uma comissão técnica voltada para as categorias de base que é completamente integrada com a profissional em ideias, metodologia, de como a jogadora deve se preparar para chegar ao profissional comigo", explica Tatiele, detalhando como se dá o trabalho para facilitar a transição entre as categorias de base e o elenco profissional.
Isso permite que mais de 1/3 do grupo de 26 jogadoras tenha passagem pelas categorias de base da Ferroviária. Muitas delas foram formadas no clube, atuaram por outras equipes e retornaram posteriormente ao time, pois já haviam sido incutidas em seu DNA e tinham conhecimento da estrutura e condições oferecidas pelo clube.
"A gente trabalha por essa integração, para que quando estourar a idade na base, a menina integre a equipe adulta. Das 26 atletas, de dez a 12 são formadas no clube. Há o caso de atletas que foram formadas no clube, saíram e voltaram por causa da identidade com o clube, pelo carinho e o trabalho que foi feito de desenvolvimento no clube", comenta Carol.
As jogadoras também possuem acesso à mesma estrutura do elenco profissional masculino. Treinam no CT do Pinheirinho, dividem salas de musculação, fisioterapia e o departamento médico. E, ainda fato raro no futebol feminino, atua no mesmo estádio do masculino, a Arena Fonte Luminosa – na primeira rodada do Brasileirão, marcada para o próximo fim de semana, apenas a Ferroviária e a Ponte Preta mandarão seus jogos no campo em que a equipe masculina atua.
"O trabalho bem feito dá resultado. A Ferroviária é um time do interior bem estruturado. Tudo que o clube tem é utilizado pelo feminino. O departamento médico é o mesmo, a refeição Não existe diferença. A realidade do feminino e do masculino é muito próxima. Esse esforço é reconhecido por todos que estão envolvidos no projeto", diz Carol.
Para 2020, o elenco sofreu algumas baixas, mas só de uma titular, a atacante Nathane, conseguindo manter as suas principais jogadoras, como a goleira Luciana, heroína da conquista do título brasileiro ao brilhar na disputa de pênaltis contra o Corinthians, e a meia-atacante Aline Milene.
Além disso, também se reforçou com sete jogadoras, como a ponta Chú, da seleção e que estava na China, e a meia-atacante Pati Sochor, campeã nacional pelo Santos sem 2017. Não à toa, ambas têm passagens anteriores pelo clube. Com elas em campo, a Ferroviária buscará manter o status de atual campeã brasileira, algo que impulsionou o clube para a liderança do ranking da CBF. Pode até não ter êxito, mas seguirá sendo referência no País quando o tema é o futebol feminino.