Basta ler os poemas que abrem o livro Não Digam Que Estamos Mortos (Bazar do Tempo) para o leitor sentir a força da poesia do americano Danez Smith: "Se caísse neve, cairia preta / por favor, não digam / que estamos mortos, digam que estamos vivos num lugar melhor / dizemos nossos próprios nomes quando rezamos / saímos atrás de balas & voltamos" são algumas estrofes de Verão, Algum Lugar.
Escritor afro-americano, gay, neutro em termos de gênero, HIV positivo e que prefere ser chamado por "eles", Danez Smith é celebrado como uma das mais inovadoras e contundentes vozes da poesia norte-americana contemporânea. Aos 31 anos, também é um grande performer, o que desde já credencia sua apresentação na Flip Virtual 2020, que começa nesta quinta, 3, como uma das mais originais e esperadas – sua mesa virtual ocorre às 18h do domingo, 6, quando termina o festival.
Smith deixa o leitor/espectador comovido, abalado até, com a força de sua poética. Em Não Digam Que Estamos Mortos, "ele imagina deixar a Terra em busca de um lugar onde os negros possam residir sem complicações. Ele se constrói rapidamente, vira a emoção do avesso, apresenta a despedida como protesto. Smith tem a primeira e a última palavra, e todas as outras", observa a repórter Kate Kellaway, do jornal britânico The Guardian, em entrevista publicada em 2018.
De fato, o livro (o segundo em sua carreira) publicado em 2017 surpreende por confrontar e repreender os Estados Unidos branco, racista e opressor – o que, por extensão, chega às terras brasileiras, onde a violência contra os negros é uma constante.
"Refletir sobre o corpo negro em performance é muito importante para se entender esse livro de Danez Smith como uma espécie de partitura básica, no sentido de essencial, a partir da qual se abrem múltiplos caminhos no âmbito da cena", comenta o multiartista Ricardo Aleixo no posfácio do livro. "E não porque seja desprovida de valor quando lida em silêncio. Apenas destaco o fato de que essa poesia parece nos lembrar, a todo tempo, que, por serem organismos vivos, as palavras guardadas nos livros precisam respirar – e aqui é quase óbvia a analogia com a situação das vidas negras em contexto global (e não apenas nos Estados Unidos da tenebrosa Era Trump), dramaticamente resumida pela frase I cant breathe."
Segundo contou ao Guardian, Smith entrou na poesia por meio do teatro: aos 14 anos, escreveu o primeiro poema em uma aula de atuação. Logo, sua escrita se tornou uma amplificação do que as pessoas experimentam regularmente em uma época em que estímulos externos ultrapassam a capacidade humana de processá-los.
A poesia de Smith é plural, prioriza a comunidade, especialmente a dos marginalizados. "Você não se pode dar ao luxo de ser um indivíduo", diz ele, ainda na entrevista ao jornal britânico.
"Ser negro, homossexual ou pobre – ser um indivíduo sempre significou a morte para nós. Ser uma mulher solitária é perigoso – ensinamos isso às nossas filhas, ensinamos isso aos negros. Nossa libertação vem através da comunidade, organização, coletivização. Individualidade significou morte. Individualidade significou estar abandonado. A individualidade é um privilégio, direito? As únicas pessoas que podem pensar em si mesmas como separadas das outras pessoas que tornaram suas vidas possíveis são os caras brancos heterossexuais."
Danez Smith respondeu, por e-mail, às seguintes perguntas do <b>Estadão</b>.
<b>Sua poesia trata de temas urgentes e encontra grande ressonância na realidade brasileira, principalmente no que se refere à situação de violência a que está submetida a população negra. Como os poetas podem afetar os movimentos de resistência?</b>
Quando penso na obra de mestres poetas e radicais ferozes, como Amiri Baraka ou June Jordan, sinto em seu mundo o que parece ser uma intenção tanto de arquivar quanto de energizar os movimentos de suas vidas, com poemas cheios de resistência e de um amor profundo e inabalável por seu povo. Vejo que é nessa tarefa no mínimo digna que podemos oferecer nossas ferramentas como poetas: documentar/testemunhar o mundo e escrevê-lo com energia tanto para desmantelar o que nos oprime quanto para amar e elevar nosso povo. Podemos escrever poemas que rememoram e também podemos escrever poemas que põem o espírito em ação. Outro caminho que podemos seguir é o de Octavia Butler, promovendo mudanças diante do que é possível, do que poderia ser. Penso que seu trabalho e o trabalho de um grande número de escritores pretos de ficção científica/fantasia/surrealismo nos mostram outras maneiras de ser, lutar e viver em outros mundos, nos mostram que talvez possamos reagir de nossas próprias formas. Nossos poemas podem fazer isso. Podem conjurar os mundos que desejamos.
<b>Como a arte pode (ou deveria) se comportar diante de eventos terríveis como o assassinato de George Floyd?</b>
"Pode" parece mais possível do que "deveria". A noção de "deveria" parece encurralar as centenas de emoções e respostas que uma pessoa pode ter em determinado momento. Não sei o que a arte deve fazer no surgimento de uma obra, mas sei que a arte pode alimentar o espírito, a marcha, a comunidade. Sei que a arte pode nos acalmar, pode acender nossa raiva útil e justa, pode nos devolver a alegria. Todo poeta, todo artista, precisa se perguntar como sua pessoa e seu ofício podem ser úteis para movimentos e povos aos quais se sente ligado. Cada um de nós precisa trazer seu próprio tijolo, e acredito que é a grande força de toda essa possibilidade, de todas essas respostas, de tudo o que a arte "pode" fazer que faz a mudança no mundo da arte.
<b>Você se considera um escritor político? Ou escritores são criaturas inevitavelmente políticas?</b>
Sou um escritor político, sim. Acho que tudo nessa terra é político – cada criatura, cada planta, cada gota dágua -, se você olhar do jeito certo. E este é o jeito que escolhi para ver o mundo.
<b>"Escrevo quando me sinto chamado à linguagem", você disse certa vez. Com que frequência você tem esse impulso?</b>
Um pouco menos nos dias de hoje, eu já vinha escrevendo mais devagar nos últimos anos, mas desacelerei muito mais durante a pandemia. Mas me sinto chamado à linguagem dos outros (agora na minha mesa estão Khadijah Queen e Douglas Kearney, além de uma pilha de poemas maravilhosos e corajosos de meus alunos) e descobri muitas coisas novas que estão acontecendo e novas maneiras de falar na escrita, mesmo que esteja mais lento.
<b>Falando nisso, que tipo de desafios de escrita você abraça?</b>
Adoro a ideia de abraçar, acalentar, agarrar-me a certos desafios de escrita. Bom… sempre fico perplexo com a possibilidade do surreal, de imagens impossíveis que os poemas tornam possíveis. Sinto que faço a maior parte do meu trabalho mais alegre com um poema quando tento esclarecer na página uma imagem que está na minha mente, quando tento puxar aquela tradução escrita o mais próximo possível não só da visão em minha mente, mas também de algo emocionalmente sólido. Agradeço quando o poema vem como linguagem e meu trabalho é só transcrever e tentar não estragar tudo. Mas, quando o que surge primeiro é a imagem, preciso encontrar a linguagem correspondente, e isso me faz arrancar os poucos cabelos que tenho, é o meu desafio favorito. A resposta sempre é diferente. Às vezes, o processo de encontrar a linguagem que contenha a imagem leva a algum outro lugar inteiramente novo, mas aí há momentos em que a linguagem deixa a imagem mais clara, mais estranha, ainda mais impossível do que era nos olhos da mente. É uma bênção.
<b>Ferreira Gullar, que foi um grande poeta brasileiro, disse que, para ele, a poesia nasce do espanto.</b>
Acho que Gullar está absolutamente certo. Ninguém jamais olhou para algo indiferente e voltou com um poema. A poesia, para mim, acontece porque o mundo, o amor, a vida, a luz, a lua, a memória, a morte, o sexo, a história, a música, os humanos, os pássaros, os corpos, a crueldade, a ciência, tudo continua a me surpreender, ficando cada vez mais incognoscível quanto mais fundo eu vou. E a única maneira de responder a todo esse desconhecimento profundo, íntimo e desconcertante é, para mim, a poesia.
<b>A literatura é uma opção de vida? Ou é algo inevitável?</b>
Acho que nunca vi meu avô ler um livro de capa a capa e ele disse que viveu uma vida boa. Ele tinha suas histórias, as canções que amava e os programas de TV que o faziam rir. E trabalhou muito e se divertia trabalhando com as mãos no jardim. Não sei, talvez esta fosse a sua literatura. Para alguns de nós, a literatura pode ser a resposta. Para alguns, a única resposta. E para outros, um outro lugar.
<b>O último poema do livro é muito comovente, traz uma imagem apocalíptica de negros parados à beira-mar, interrogando o oceano que engoliu seus ancestrais. A ligação com o título do livro, Não Digam Que Estamos Mortos, está ali com a intenção de honrar o passado?</b>
Bingo! Tatuei nas minhas costas a citação de um filme que eu adorava quando era criança: "Nós não morremos, nós nos multiplicamos". Não é a coisa mais preta de todos os tempos? Espero que Não Digam Que Estamos Mortos faça algo semelhante, oferecendo aos nossos corpos tantas vezes ameaçados um pequeno pedaço de eternidade, unindo "todos nós" em um "nós" que pode viver para sempre.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>