Em 2019, Jorge Takla comandava os preparativos da ópera Rigoletto no Teatro Municipal de São Paulo. Entre uma instrução e outra ao elenco, o diretor observou um movimento estranho, vindo das cortinas ao fundo da plateia, e enxergou, meio escondido, o maestro João Carlos Martins. Takla, que nunca tinha sido apresentado ao artista, foi até lá e o convidou para acompanhar os trabalhos, sentado confortavelmente em uma das poltronas. "Obrigado, mas eu não posso, também tenho o meu ensaio e está na hora", justificou Martins, um pouco constrangido com o flagra.
Este tinha sido o único contato entre Takla e Martins até dezembro passado, quando a equipe do Sesi sugeriu ao maestro o nome do encenador, um craque do teatro musical e da ópera, para assumir a curadoria de uma exposição em torno de sua obra. "Será que o Takla toparia, teria tempo para isso? De qualquer forma, ele carrega a qualidade que mais admiro em um profissional, o perfeccionismo", respondeu o homenageado diante da indicação.
Às vésperas da abertura da mostra João Carlos Martins: 80 Anos de Música, prevista para esta quarta, 16, no Centro Cultural Fiesp, os dois dão risada desse inusitado primeiro contato. Takla jamais havia organizado um evento do gênero e, tomado pelo desafio, topou a proposta que preencheu o vazio de sua agenda pandêmica. Decidiu, então, aprender como um novato, mergulhou em pesquisas sobre o novo personagem e descobriu um vasto material em publicações estrangeiras. "Poucas pessoas valorizam o João Carlos no Brasil da maneira que deveriam porque sua carreira nos anos de 1960 e 1970 ficou concentrada no exterior", afirma o curador. "E, para contar essa história, tive que criar uma cenografia, um conceito de luz e trabalhar uma trilha sonora, algo não muito distante do que faço nas artes cênicas."
A biografia de Martins, cheia de baques e superações, foi explorada à exaustão. Com o enredo A Música Venceu, a escola de samba Vai-Vai faturou o carnaval de 2011. No cinema, Mauro Lima dirigiu o filme João, o Maestro (2017) e teve também a peça de teatro Um Concerto para João (2018). "A história da minha vida já encheu a paciência de todo mundo, ainda bem que a exposição traz um enfoque diferente", brinca Martins.
<b>Personalidade pela música</b>
Takla dispensou detalhes políticos ou sobre casamentos e minimizou situações de peso dramático, como os vários problemas e acidentes que, ao longo do tempo, comprometeram os movimentos e sua habilidade ao piano. "É uma exposição sensorial, em que a música acompanha o público o tempo inteiro e, assim, será desvendada a personalidade do grande artista", avisa.
Fotos, vídeos, reportagens e objetos pessoais estão divididos em duas fases dentro do espaço expositivo, uma área de 800 metros quadrados. A primeira delas, O Pianista, com corredores que conduzem a uma viagem entre os anos de 1940 e 2003, e a segunda, O Maestro, que foca a reinvenção do homem impedido de tocar piano. Em outra sala, uma holografia do artista conversa com o visitante e executa músicas marcantes. Também há uma brincadeira interativa em que o público poderá se passar por maestro e reger uma sinfônica.
João Carlos Martins esboça surpresa quando ouve algumas dessas atrações e garante que não acompanhou nada. "O único palpite que dei, a pedido do Takla, foi a escolha de cinco músicas que seriam usadas em algum momento que não sei bem", conta. "Ah, emprestei também uma camiseta da Portuguesa, então deve ter algo relacionado ao meu time", emenda.
Curioso mesmo ele está para saber mais de uma coreografia criada por Anselmo Zolla e executada por dois bailarinos da Studio3 Cia. de Dança. "Será exibida uma projeção que mostra um homem, no caso uma representação do João Carlos, e uma mulher, a simbologia da música na vida dele, embalados por um tango de Astor Piazzolla", antecipa o curador.
Takla estranhou as inúmeras instâncias e hierarquias em torno da concepção e montagem de uma exposição. "O teatro é mais simples", compara. No fim das contas, porém, o resultado ficou do jeito que queria. "João Carlos foi a melhor coisa que me aconteceu nessa pandemia e trabalhar ao lado dele me devolveu um estímulo que julgava perdido", confessa ele que, em agosto, dirigiu uma versão virtual da ópera Cartas Portuguesas junto da Osesp, a única atividade na quarentena até então.
Para o teatro, o encenador continua desmotivado – algo que já manifestava antes da pandemia. Suas últimas montagens foram a comédia Vanya e Sonia e Masha e Spike (2015) e o musical My Fair Lady (2016) e, para ele, se o segmento já atravessava uma enorme crise, o coronavírus veio como uma aceleração de efeitos desastrosos. "Vamos perder uma geração inteira que não terá a oportunidade de saber o que é o real contato com o teatro", lamenta Takla que, nas próximas semanas, viaja para seu Líbano natal e, quem sabe, ainda impregnado da energia de João Carlos Martins, encontrará novas inspirações.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>