Fellini para o século 21

Na primeira cena, o menino abre a janela e vê a lona sendo levantada. Pergunta à mãe o que é. "O circo chegou", ela responde. Essa é uma "cena primitiva", fantasia original do artista, e está em Os Palhaços (1970), falso documentário sobre figuras mitológicas dessa arte. O menino é Federico Fellini e a cidade é Rimini, no litoral adriático, onde nasceu em 20 de janeiro de 1920. Amanhã comemora-se o centenário desse cineasta inigualável, o que mais nos fez mais sonhar, o que mais tocou nas cordas do nosso inconsciente, mobilizando uma emoção que nunca sabemos ao certo de onde vem. A lembrança de infância funciona como uma espécie de modelo para o cineasta por vir.

Federico saiu de sua província natal e foi ser jornalista em Roma. Chegou ao cinema ao participar do roteiro de Roma Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini. Aprende com Rossellini, em especial ao acompanhar as filmagens de Paisà. Seu primeiro longa, Mulheres e Luzes (1951), é feito em parceria com Alberto Lattuada. Viriam depois Abismo de um Sonho (1952) e Os Boas Vidas (1953), este um primeiro ponto de virada, em que um estilo memorialístico se define na história do grupo de malandros vivendo à custa da família em Rimini. Apenas um deles, Moraldo, alter ego do diretor, escapa à sina provincial e vai em busca do seu destino.

Os dois filmes como Giulietta Masina, com quem está casado desde 1943 e será sua esposa pelo resto da vida, fazem sucesso – A Estrada da Vida (1954) e Noites de Cabíria (1957). Ambos ternos, magníficos, solidários com a condição feminina num mundo patriarcal. Os dois são premiados com o Oscar de melhor filme estrangeiro.

Com A Doce Vida (1960), alcança novo patamar, na forma e no conteúdo. Com uma estrutura em episódios, dispostos como um mosaico, conta a saga de Marcello Rubini (Marcello Mastroianni), jornalista de fofocas que deseja escrever um livro sério, mas não consegue. É filme definitivo sobre a cultura dos anos 1960, a sociedade do espetáculo e a alienação. Na abertura, uma sequência magnífica, o Cristo no helicóptero sobrevoando a Roma pagã. O filme ganha a Palma de Ouro em Cannes e é divisor de águas entre o Fellini pós-neorrealista e o Fellini que valoriza o mundo da fantasia e dos sonhos.

Se em A Doce Vida prevalece a estrutura em mosaico, o que rege Oito e Meio (1963), seu longa seguinte, é a indistinção entre fantasia e realidade. Guido Anselmi (Mastroianni), é o diretor que não consegue começar seu filme. Dessa fábula do impasse criativo, Fellini tira seu trabalho mais inventivo e subversivo. Verdadeiro salto mortal estético e existencial.

O que fazer depois de chegar a ponto tão alto? Prosseguir, e voltar ao universo feminino, mas desta vez de forma onírica em Julieta dos Espíritos (1965), feito para e estrelado por sua Giulietta Masina. Entre o sentimento do pecado e o sonho de liberdade, Julieta imerge em sua vida de fantasia e desejos. De cores vivas, o filme é influenciado pelas experiências recentes de Fellini com o LSD.

Com Amarcord (1973), talvez sua obra mais amada, recua de novo a uma infância transfigurada pela imaginação, trata com ternura os tipos de sua Rimini imaginária e fustiga sem piedade o fascismo, através da arma mais poderosa, a lente sobre o ridículo do poder. Quem acha Fellini apolítico deve revisitar essa obra (e outras) e revisar seus conceitos.

Fellini vai também à antiguidade e tira dos fragmentos de Petrônio essa obra ímpar e intrigante que é Satyricon. Exuma a persona do sedutor Giacomo Casanova e faz, de sua antipatia pelo personagem, uma obra-prima crítica ao sexo mecânico. A fase final é brilhante, com obras notáveis como Roma (1972), Ensaio de Orquestra (1979), E la Nave Va (1983). Após Ginger e Fred (1985) e Entrevista (1987), Fellini põe um ponto final em sua trajetória com o enigmático Vozes da Lua, mal recebido pela crítica e merecendo revisão. É de 1989, aurora desta nossa era, e talvez a prefigure com suas histórias de lunáticos, personagens que ouvem vozes e deliram.

Fellini é acessível e misterioso, ao mesmo tempo. Um claro enigma, que nos impele a interpretá-lo. Mas talvez não seja boa ideia aprisioná-lo em teorias muito rígidas. Seus filmes constroem um espaço de liberdade no qual podemos exercitar nossa imaginação, sensibilidade e fantasia. Nunca precisamos tanto dele.

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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