Alvo de suspeitas de corrupção na compra de vacinas, o Ministério da Saúde escolheu uma empresa multada e advertida pelo menos 75 vezes por descumprir contratos com o próprio governo federal para fornecer diluentes a imunizantes da Pfizer contra a covid-19. O negócio com a FBM Farma, selecionada num processo sem licitação, chamou a atenção da Controladoria Geral da União (CGU), que identificou uma série de falhas, além do histórico de problemas. Relatório da CGU, ao qual o <b>Estadão</b> teve acesso, aponta sobrepreço de R$ 2,5 milhões no valor do produto, além de critérios adotados para a compra que limitaram a participação de outros fornecedores.
O processo de compra dos diluentes, que começou em abril e ainda está em negociação, envolve duas áreas que já enfrentaram denúncias de irregularidades na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid. A primeira é a secretaria executiva do Ministério da Saúde, na qual trabalhava Roberto Ferreira Dias, ex-diretor do Departamento de Logística; a segunda, a Secretaria de Vigilância em Saúde, onde dava expediente Lauricio Monteiro Cruz, ex-diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis.
As duas áreas são subordinadas diretamente ao ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Tanto Dias – que chegou a ser preso na quarta-feira, após depor na CPI – quanto Cruz foram demitidos recentemente, após denúncias de fraude envolverem a importação de vacinas contra o novo coronavírus. Com a tarefa de investigar ações e omissões do governo de Jair Bolsonaro no enfrentamento da pandemia, a CPI faz um pente-fino em contratos e negociações em andamento.
Bolsonaro responde a inquérito aberto pela Procuradoria-Geral da República para apurar suspeita de prevaricação no caso da negociação da vacina indiana Covaxin. A omissão teria ocorrido porque o presidente não determinou abertura de investigação sobre a compra da Covaxin após ser informado dos indícios de irregularidades pelo deputado Luis Miranda (DEM-DF) e pelo irmão dele, Luis Ricardo Fernandes Miranda, servidor de carreira do ministério.
Embora a compra do produto da FBM Farma ainda não tenha sido concluída, a negociação prevê que, ao todo, sejam fornecidos 18 milhões de unidades do diluente (soro fisiológico), suficientes para preparar 100 milhões de doses da Pfizer.
No relatório, a CGU fez recomendações para que o ministério possa mitigar os riscos na contratação da FBM Farma, uma indústria sediada em Anápolis (GO). Um dos sócios e diretores da empresa é Marcelo Reis Perillo. Ele já foi alvo de investigações da Polícia Federal e tem parentesco com o ex-governador tucano Marconi Perillo.
Ampolas. O diluente que o Ministério da Saúde precisa comprar é o cloreto de sódio (NaCl) 0,9%, o soro fisiológico, necessário para permitir a aplicação das vacinas contra covid-19 da Pfizer. Diferentemente de outras duas vacinas usadas no País, como a Coronavac e a AstraZeneca, o imunizante da Pfizer é fornecido pelo fabricante ao governo em ampolas concentradas, que rendem seis doses cada. O produto deve ser diluído em soro fisiológico, pouco antes da aplicação. Esse insumo é adquirido pelo Ministério da Saúde para distribuição aos Estados e municípios.
Os apontamentos da CGU começam nesse capítulo. O governo pediu que o diluente fosse fornecido em frascos de 10 ml. Só que, para evitar a contaminação, os agentes de saúde só podem extrair e usar 1,8 ml de cada frasco de cloreto de sódio, para diluição correta da vacina, a fim de produzir seis doses da Pfizer a partir da ampola concentrada.
Assim, os 8,2 ml restantes de cloreto de sódio têm de ser descartados.
Por isso, para os auditores da CGU, o governo deveria ter previsto e feito pesquisas de preço com o soro fisiológico apresentado em frascos menores, de 2 ml ou 5 ml, por exemplo, e não apenas de 10 ml, para ampliar a competitividade no mercado fornecedor.
A quantidade de ampolas exigidas também restringiu a escolha. O Departamento de Logística determinou que uma única empresa fornecesse 18 milhões de unidades de cloreto de sódio. Isso limitou a quantidade de firmas capazes de suprir a demanda, segundo os auditores. Mais de 200 empresas foram contatadas, mas a maioria não atingiu esse número. Somente a FBM Farma apresentou proposta de negociação, representando conjuntamente cinco fabricantes. A entrega das 18 milhões de doses, porém, seria feita em cinco etapas até agosto, e não de uma só vez. Para a CGU, o ministério poderia reduzir os custos aceitando propostas em menor quantidade, que, somadas, chegassem ao total.
"Esses dois fatos podem ter sido suficientes para que tivesse apenas uma única empresa interessada em contratar com o Ministério da Saúde e, consequentemente, que o preço aceito pelo gestor, de R$ 0,47, fosse maior que o valor da mediana calculado pelo Ministério da Saúde, de R$ 0,33, produzindo um sobrepreço de R$ 2.524.900, 00", apontou o relatório da CGU.
O valor total da compra é de R$ 8,5 milhões, acima das médias de mercado pesquisadas. O preço de cada unidade do diluente será de R$ 0,47. O ministério tentou negociar uma redução para R$ 0,33, mas a FBM Farma, única fornecedora encontrada, recusou. O governo considerou a proposta apta e dispensou a estimativa de preço menor.
A CGU também encontrou outro indício de gasto excessivo. O Ministério da Saúde usou uma reserva técnica incomum. Em vez de 5% do total, como é habitual, as secretarias pediram 8,2%, sem apresentar justificativa. Assim, ao fim dos cálculos, o governo estaria comprando 534.800 frascos de cloreto de sódio a mais do que de costume.
Os auditores consideraram que há riscos na compra e cobraram do Ministério da Saúde justificativas, ajustes e revisões, além de vigilância por parte dos fiscais de contrato, caso seja firmado com a FBM Farma.
Novo chamamento. Questionada, a FBM Farma afirmou que trabalha com "altos padrões de integridade e comportamentos éticos", mas não deu detalhes sobre o fornecimento do diluente. Em nota, o Ministério da Saúde disse ter adotado orientações da CGU e publicou um novo chamamento público, no mês passado, permitindo a entrega parcelada e em doses menores da solução de cloreto de sódio 0,9%.
"O Ministério da Saúde informa que foram acatados os apontamentos feitos pela CGU. A pasta esclarece, ainda, que o processo de aquisição dos diluentes está em andamento, portanto, nenhum empenho ou pagamento foi realizado". No entanto, o ministério não disse se manterá a negociação em andamento com a empresa ou se recebeu outras propostas mais vantajosas.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>