É um paradoxo, mas às vezes de longe se vê melhor o que esteve perto. Nos últimos 37 anos tem sido assim para a família Schurmann. Hoje, quando chegarem a Ilhabela, no litoral norte paulista, terão ainda 57 portos mundo afora pela frente.
A bordo do veleiro Kat, batizado com o nome da filha do casal, morta há 15 anos, em decorrência das complicações do HIV, a família que já completou três voltas ao mundo estará no começo de uma nova expedição, a Voz dos Oceanos.
Trata-se da quarta grande expedição dos Schurmann. Depois de deixar Fernando de Noronha para trás, em dezembro, o Kat seguirá para Estados Unidos, Caribe e Oceano Pacífico e terminará sua jornada em 2023, em Auckland, na Nova Zelândia.
Vilfredo e Heloísa, ao lado do filho Wilhelm, e da nora Erica, além de uma tripulação de três pessoas que participam do projeto, completarão a jornada em dois anos. Os outros dois filhos do casal se juntarão periodicamente à família no mar.
Desta vez, o objetivo é conscientizar as pessoas sobre o problema do lixo nos mares, principalmente o plástico, e avaliar a qualidade da água e a biogeoquímica dos oceanos. Eles vão coletar dados de lugares contrastantes para medir e mostrar os impactos sofridos pelos oceanos, resultado direto das atividades humanas.
O mais recente relatório do IPCC, o painel de cientistas sobre mudanças climáticas organizado pela ONU e divulgado em agosto, aponta para mudanças drásticas no nível dos oceanos e para a decrescente capacidade de retirar o dióxido de carbono da atmosfera na medida em que o planeta se aquece.
Durante a expedição, um drone com uma câmera hiperespectral fará voos periódicos para coletar informações sobre a interação da luz do Sol na superfície da água. Dessa forma, os materiais plásticos serão identificados e quantificados. A expectativa é de que os dados ajudem a construir o Hub Voz dos Oceanos, rede global que terá dados para a comunidade científica e para a opinião pública.
Os Schurmann partem com uma imagem que reforça o que já viram em viagens anteriores. Pouco após começarem a jornada em Santa Catarina, no fim de agosto, durante a primeira parada da expedição, em Santos, o casal Vilfredo e Heloisa participou de uma ação de limpeza na Favela do Dique, o maior conjunto de palafitas do Brasil.
"O que a gente constatou de lixo plástico foi assombroso", diz Vilfredo. "No mangue, a quantidade de material de uso único, copinhos, pratos de plástico é enorme."
Este ano marca o início da Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, proposta pela ONU para conscientizar a população sobre a importância da manutenção do hábitat das espécies marinhas e do impacto da ação humana.
Além dos aspectos científico e educacional, a expedição pretende ser um catalisador de iniciativas inovadoras que possam diminuir os impactos gerados por produção, consumo e descarte do plástico e do microplástico nos oceanos. Em parceria com uma aceleradora de startups, novas iniciativas serão classificadas para se juntar a uma rede e conectar suas soluções com demandas de indústrias, passar por aceleração e receber investimento.
<b>Saudade e esperança</b>
Sem querer, os anos passados no mar prepararam a família para o isolamento forçado durante a pandemia. No início de 2020, eles foram surpreendidos. Em uma viagem para as Ilhas Falkland (Malvinas), Vilfredo, Wilhelm e a mulher, Erika, ficaram retidos durante quatro meses na ilha de Geórgia do Sul, território britânico no Oceano Atlântico.
"O isolamento no mar tem uma diferença crucial da pandemia. Quando fomos para o mar, fomos porque nós queríamos", diz Heloisa. "Mas, por ter passado um longo período no mar, já tínhamos uma experiência."
O mar também ensina a contornar a tristeza. Do último um ano e meio de pandemia e dos últimos 15 anos, desde que a filha se foi. Desde que Heloisa e Valfrido adotaram a menina, soropositiva, ainda pequena, na Nova Zelândia, Kat esteve em todas as viagens e expedições da família.
"Recebemos hoje uma mensagem de uma pessoa dizendo que tinha visto uma reportagem sobre a gente. Essa pessoa foi a mesma que cuidou dela quando ela morreu, para a cerimônia, e ela se lembrava do cabelinho dela, da boneca que estava com ela… Isso me fez pensar, como uma pessoinha , tão pequena, que não tinha nem 14 anos ainda deixou uma impressão tão forte", afirma Heloisa.
De longe também se vê o que já esteve perto. "É um momento …de saudade… é como se não tivessem se passado esses 15 anos. É como se estivesse aqui conosco."
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>