Estadão

Em Cura, Deborah Colker foca nos limites humanos

Em Nó, a forma como o homem lida com o desejo era o mote da coreografia; já em Cruel, as pequenas maldades que movem o ser humano (não os atos que provocam tragédias, mas as manifestações corriqueiras que não são percebidas ou admitidas pelos praticantes) invadiam o palco. Agora, em Cura, a coreógrafa Deborah Colker parte de uma limitação do corpo humano para tratar de ciência, fé, preconceito, superação e aceitação. Parece muito, mas não diante da dor que fustigou a alma dessa artista. "Foi minha luta contra o inadmissível", conta Deborah sobre o espetáculo que estreia neste sábado, 25, às 20h, em transmissão pela Globoplay, com sinal aberto para não assinantes – em seguida, haverá uma temporada no Rio de Janeiro até chegar ao Teatro Alfa, em São Paulo, no dia 4 de novembro.

Conhecida por criar coreografias com abrangência de estilos e que estabelecem uma gramática para o corpo, Deborah sempre exaltou a vitalidade e a graça física. Em Cura, seu 15º trabalho, não é diferente, mas foi a fragilidade humana que norteou seu processo criativo. E o ponto de partida é a incessante busca por uma solução para a doença genética de seu neto, Theo, hoje com 12 anos. Ele sofre de epidermólise bolhosa, que provoca feridas na pele ao menor atrito.

"O espetáculo não trata especificamente do caso dele, mas da minha indignação por situações que ainda não têm cura", conta ela que, à medida que acompanhou todas as possibilidades de resolução para a situação do neto, alimentou seu respeito pela ciência, além de reforçar sua fé.

Deborah iniciou o projeto em 2017, mas foi no ano seguinte, quando morreu o cientista britânico Stephen Hawking, que ela percebeu qual seria, de fato, o conceito. "Hawking sofria de uma doença degenerativa (a ELA, esclerose lateral amiotrófica) e os médicos não lhe deram mais do que três anos de vida – mas ele viveu mais 50 e de uma forma muito criativa. Foi ali que entendi o que é a cura do que não tem cura", conta.

O projeto previa inicialmente que o espetáculo estreasse em Londres, em 2020, mas a pandemia da covid cancelou todos os planos. A necessidade de ficar isolada permitiu que Deborah se aprofundasse em suas pesquisas e reflexões. "E, como logo se descobriu uma vacina contra o novo coronavírus, portanto, um caminho para a cura, a pandemia não influenciou no trabalho."

Mais decisiva foi uma viagem da coreógrafa ao continente africano, mais especificamente a Moçambique, durante a preparação. "Quando voltei, o rabino e escritor Nilton Bonder me perguntou se havia encontrado a cura para os malefícios que atingem aquela população. Respondi que não, mas o que vi me motivou profundamente: encontrei um povo que, mesmo com inúmeros problemas, não abandona a felicidade nem a força de viver. Fui procurar a cura e encontrei a alegria."

Aos poucos, o conceito do espetáculo Cura tornava-se mais claro para Deborah, especialmente quando notou que o caminho era estabelecer uma ponte entre ciência e fé, entre amor e genética, entre aceitar e lutar. E, depois de realizar um de seus mais importantes trabalhos, Cão Sem Plumas, inspirado na obra de João Cabral de Melo Neto, Deborah sentiu a necessidade de apostar agora nas palavras.

Assim, convidou Bonder, que conheceu em uma cerimônia realizada quando da morte do seu pai, para cuidar da dramaturgia. O rabino baseou-se nos Salmos de Davi, especialmente os que expressam o desejo de salvação do homem diante da precariedade e das incertezas da vida. Deborah conta que ficou impressionada com algumas afirmações de Bonder, como "pedir é curar", o que inspirou uma cena do espetáculo. "Ele também me disse uma frase forte, a grande cura é a morte, o que me motivou a criar uma coreografia com dois bailarinos dançando ao som de You Want it Darker, canção de Leonard Cohen."

"O espetáculo apresenta todos os recursos imunitários e humanitários em aliança pela cura. A ciência, a fé, a solidariedade e a ancestralidade são o coquetel de cura do que não tem cura. Concebido antes desta pandemia, o título não é um conceito , mas um grito", afirma Bonder, no material de divulgação do trabalho.

Para reforçar o aspecto da fé, Deborah aproveitou a viagem a Moçambique para unir elementos da cultura africana à indígena e oriental, garantindo referências de várias religiões. Assim, o espetáculo é aberto com a narração da história de Obaluaê, orixá das doenças e das curas, em um texto lindamente lido por seu neto, Theo. Um feliz encontro, pois se trata da trajetória do orixá que nasceu com problemas físicos e é rejeitado, sendo acolhido por Iemanjá, que vê beleza onde todos apontam feiura.

Em meio a essa confluência de credos, Deborah convidou Carlinhos Brown para compor o tema dessa abertura, em que Obaluaê é visto no palco por dançarinos escondidos dentro de uma enorme vestimenta de palha. "Mas, quando ele me apresentou versos como traga meu sorriso para dentro e sou mais forte que minha dor, tive a certeza de que toda a trilha teria de ser composta por ele", conta a coreógrafa.

"A música veio na minha cabeça logo depois da primeira conversa com Deborah. Eu pensei: Isso é um chamado, não é uma trilha normal. É um trabalho muito mais profundo do que Carlinhos está fazendo uma trilha", diz o músico, também no material de divulgação. Assim, ele não só canta em português como também em ioruba e até em aramaico. E, pela primeira vez em um espetáculo de Deborah, os 13 bailarinos também cantam, em hebraico e em línguas africanas.

O cenário, criado pelo diretor de arte Gringo Cardia, traz em uma cena duas rampas nas quais os bailarinos testam a sensação de desequilíbrio; em outra, várias caixas que, entre várias funções, formam um muro. "Que pode lembrar o Muro das Lamentações, de Jerusalém", comenta Deborah. "Mas também passa a imagem de um grande obstáculo, que se divide em vários pedaços. Então, é possível atravessá-lo – é como a gente faz em nossas vidas", completa Cardia, para quem Deborah passou por um crescimento espiritual. "Foi conversar com Deus neste espetáculo."

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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