A transferência de 523 peças de religiões de matriz africana para o Museu da República, no Rio, no fim de setembro, reacendeu o debate sobre a descriminalização e a repatriação da memória negra do Brasil. Imagens, instrumentos e indumentárias foram retirados dos donos sem autorização até décadas atrás, de modo coercitivo, e grande parte continua longe de suas origens. O acervo estava em caixas, em condições precárias e em meio a itens de investigações policiais.
O caso mais recente é fruto de décadas de reivindicação, que ganhou força nos últimos anos com o nome de Liberte Nosso Sagrado. A coleção reúne os 126 itens restantes (parte foi perdida em um incêndio) do originalmente chamado acervo de Magia Negra, primeiro bem inscrito no livro de tombo arqueológico, etnográfico e paisagístico do Iphan, em 1938, que depois recebeu outros itens. Em comum, todos foram confiscados pela polícia de 1889 a 1945, quando a prática de candomblé e umbanda era crime.
Uma das mais importantes lideranças no candomblé carioca, a ialorixá Mãe Meninazinha dOxum, de 83 anos, costumava ouvir da avó (também mãe de santo) a necessidade de reaver as peças sequestradas por agentes públicos e, depois, armazenadas no Museu da Polícia. "Pegaram o que era nosso sagrado e levaram para a polícia, como prova de um crime que não cometemos. Era chamado de crime porque era religião de negro", lamenta.
Para ela, que relata alívio com descriminalização do acervo, a futura exposição das peças é positiva. "Seria ótimo que as pessoas fossem para conhecer, ver o que passamos. Tudo isso foi fruto do racismo religioso", diz.
Um dos diretores do documentário Nosso Sagrado, que narra essa trajetória, o historiador Jorge Santana lembra que o movimento também constatou que as peças estavam acondicionadas de modo inadequado, em caixas de papelão, sem as condições necessárias de preservação e, ainda, com traças.
O movimento se inspirou em caso similar de Salvador para entrar com representação no Ministério Público Federal (MPF) em 2017, que depois virou inquérito. A reivindicação focou em dois pontos: o acondicionamento inadequado e a reparação histórica. Santana lembra que, embora em parte tombado, o acervo sofre com falta de informações de origem. As poucas informações sobre sua história vieram de pesquisas em antigos textos jornalísticos.
Segundo ele, esse tipo de intolerância e violência religiosa ainda permanece no País, com casos de invasão e depredação de terreiros, especialmente por criminosos que se declaram cristãos neopentecostais.
As peças estão em fase de higienização e documentação fotográfica após terem passado por quarentena, explica Mario Chagas, diretor do Museu da República. Ainda são previstos trabalhos de conservação e de restauro, pois parte das imagens está quebrada e com danos graves, além de pesquisas, que devem continuar pelos próximos anos. A ideia é que parte das peças esteja em exposição até novembro de 2021, com uma disposição que será discutida por um grupo de trabalho formado em conjunto com representantes do povo de santo. "Várias narrativas são possíveis, podemos tratar desse acervo na perspectiva histórica, na perspectiva estética, antropológica, tem a dimensão educacional", diz.
"Não pretendemos fazer uma única exposição definitiva. Nossa ideia é ir trabalhando gradualmente, com múltiplas narrativas, mas sempre mantendo alguma coisa exposta", explica Chagas. Ele destaca que serão expostas apenas as peças que tiveram anuências das lideranças religiosas. Um livro também está nos planos do museu.
O diretor explica que os itens são diversos, de materiais como palha, madeira, metais, tecidos e louças, como imagens de entidades e santos, coroas, espadas, figas, colares de miçangas, cachimbos, escudos, machados, leques, peças de indumentária e instrumentos variados.
"A libertação desse sagrado não interessa só aos praticantes das religiões de matriz africana, interessa aos budistas, católicos, evangélicos, judeus, ateus, interessa a todos que tenham a consciência da importância da liberdade de manifestação religiosa e da liberdade de expressão."
Chagas ainda destaca o simbolismo de as peças serem expostas no Palácio do Catete, hoje espaço museológico, mas antes sede do Executivo federal no período em que as religiões afro eram criminalizadas. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>