O empresário de futebol André Cury, de 51 anos, até tentou seguir na carreira universitária, nos anos 90. Cursou, por um tempo, Direito na PUC-SP, mas acabou deixando a faculdade por força de uma necessidade e de uma vocação. Precisava trabalhar e, ao mesmo tempo, encontrar um caminho que lhe aproximasse de uma grande paixão: o futebol.
Foi quando Cury se tornou funcionário da concessionária KPM Nissan, da qual o empresário J. Hawilla era frequentador. Hawilla (morto em 2018) comandava a Traffic, empresa de marketing esportivo que também passou a agenciar jogadores de futebol e teve seu fundador envolvido com corrupção antes de morrer. Cury, na época, se tornou assessor de Hawilla.
Ao mesmo tempo, Cury utilizava a experiência com o empresário, em contato com grandes nomes do segmento na época, como Juan Figer (falecido em 2021), Francisco Todé e Gilmar Veloz, ainda atuante, para trabalhar junto com seu amigo de infância, Giuliano Bertolucci, na transferência de jovens jogadores, então desconhecidos do público, para mercados alternativos da Europa. O trabalho era tentar emplacar esses atletas em "bons negócios".
Cury e Bertolucci se conheceram ainda meninos, com cerca de 9 anos de idade, quando treinaram basquete no clube Pinheiros e no Esperia, na capital paulista. Atualmente, são os dois principais agentes esportivos no Brasil, participando de pelo menos 50% das maiores transferências de jogadores para o exterior, nos últimos dez anos, com movimentação financeira incalculável.
Entre as três maiores negociações da história do futebol, Cury participou de duas. E conta isso com orgulho. "Para estar neste ramo é necessário muito trabalho e muitos contatos. Foi assim que cresci como empresário. Atuei na negociação que levou o Neymar do Barcelona para o PSG, envolvendo 222 milhões de euros, sendo a maior transferência de todos os tempos. E também fui agente na ida do Philippe Coutinho do Liverpool para o Barcelona, por 165 milhões de euros. Só não participei da segunda maior, que foi a transferência de Mbappé do Monaco para o PSG, por 180 milhões de euros", diz.
Já Bertolucci, considerado por muitos o mais influente agente da atualidade, atua com uma parcela significativa de jogadores, como David Luiz, Marquinhos, Thiago Mendes, Oscar, Willian e Paulinho (ambos no Corinthians), tanto como representante como na intermediação de negociações. Cury também representa e intermedeia, prática que, muitas vezes, faz os dois amigos, hoje donos de empresas individuais, atuarem em parceria.
O COMEÇO
O sogro de Bertolucci, Antônio Duarte Ferreira, conhecido como o seu Duarte, era então proprietário da Euro Export, que detinha o controle das categorias de base do Juventus, do bairro paulistano da Mooca. "Sempre fui apaixonado por futebol. Ia a todos os jogos, mesmo os que não eram do meu time. Também era apaixonado pela seleção brasileira. Em 1992, comecei a estar mais perto, atuando com o Bertolucci, meu amigo de infância, e com o seu Duarte, sogro dele, na Euro Export. Na mesma época, conheci o J. Hawilla e participei dos primeiros anos da Traffic, ganhando experiência e conhecendo melhor o setor", conta.
A atividade, mesmo que ainda iniciante, os introduziu no mercado internacional. Foi um salto na profissão. "Foi uma fase inicial, mas que rendeu frutos para o futebol brasileiro. Negociamos jogadores que depois se consagraram, como o Deco, o Thiago Motta, os zagueiros Alex (ex-Santos) e Luisão, além de vários outros que também seguiram carreira, como o Peixinho, o Ângelo e o Gaúcho", pontua Cury.
Cury e Bertolucci são símbolos de uma nova era no futebol, a partir da criação da Premier League e da Liga dos Campeões, em 1992, e do fim do chamado passe no futebol, com a Lei Bosman, de 1995. Desde então, os jogadores deixaram de ser patrimônios dos clubes e passaram a ter um contrato por tempo determinado, assumindo, assim, controle do seu caminho no futebol. A mudança fez com que muitos empresários tivessem mais autonomia e força nas transações. Cury e Bertolucci viram a brecha.
As ligas tornaram os campeonatos mais dinâmicos e rentáveis, com um novo modelo de negociação dos royalties e das transmissões. Já o fim do passe permitiu que os jogadores se desvinculassem dos clubes com maior facilidade, aumentando em muito o número de transferências.
Em sua tese de mestrado em Gestão, pelo Instituto Universitário de Lisboa, Luís Emanuel de Capelo Osório Saraiva já detectava essa tendência em 2011. "Verificou-se que os valores médios (de transferências) praticados no mercado aumentaram quatro vezes, entre 1983 e 2010, assim como, a quantidade de jogadores transaccionados (sic) ampliaram dez vezes", escreveu, em seu trabalho, comparando os anos de 1983 e de 2010.
JOVENS JOGADORES
Com essa visão, Cury e Bertolucci foram ganhando território entre os agentes, a ponto de Cury ter atuado como representante do Barcelona na América do Sul entre 2003 e 2020. "Eu fazia um trabalho de mapeamento para o clube espanhol, ajudando também nas transferências. Mas, pelo contrato, eu sempre tive autonomia para exercer minhas atividades como empresário. Foi uma experiência inesquecível, conviver com os melhores, participando de negociações que trouxeram o Ronaldinho Gaúcho, o Deco, o Neymar, entre outros, com 40 títulos conquistados, fazendo muitos contatos e conhecendo de perto a gestão do maior clube do mundo", ressalta.
Cury conta que hoje trabalha com cerca de 220 jogadores. Grande parte do elenco de vários clubes brasileiros tem jogadores representados por ele. No Palmeiras, são sete, entre os quais Raphael Veiga, Dudu e Piquerez. No Atlético-MG, são oito, entre eles Guilherme Arana e Keno. Ele também intermediou a vinda do chileno Vargas para o clube mineiro. Junto com Bertolucci, atuou na transferência de Martinelli, do Ituano para o Arsenal, considerada a maior negociação da história do interior paulista.
"Certamente já participei de mais de mil negociações em toda a minha trajetória. Isso levando em conta os tempos em que atuei novamente na Traffic (hoje TFM), entre 2007 e 2011. Agora tenho uma empresa da qual sou o único sócio", diz, referindo-se à Link Assessoria Esportiva.
Bertolucci, que não respondeu às perguntas do <b>Estadão</b>, também representa centenas de jogadores brasileiros espalhados pelas principais ligas do mundo, como Matheus Cunha, Bruno Guimarães, Danilo (Palmeiras), David Neres, Igor Gomes e Andreas Pereira.
Ao analisar as mudanças no cenário do futebol nas últimas décadas, o empresário Décio Berman aponta como um dos fatores o aumento da concorrência, em função da globalização. "Muitos aspectos mudaram. A velocidade e a qualidade do fluxo de informações e dados cresceram muito, assim como a concorrência com jogadores de outros países e continentes como africanos, sul-americanos e asiáticos. Por outro lado, há um maior volume de dinheiro para transferências e contratos de trabalho. O ambiente de negócios está cada vez mais exigente", afirma.
Ciente de que, neste momento, os clubes europeus buscam jogadores brasileiros muito jovens, monitorando-os desde as categorias de base, Cury montou uma nova plataforma de negócios, a Under Sports, voltada apenas a trabalhar com atletas em formação, para serem negociados a partir dos 18 anos. Nesta iniciativa, ele divide a sociedade com Berman e com Francisco Godoy.
"Em razão dessa nova dinâmica do mercado, resolvemos criar a Under Sports, especializada em assessorar as famílias dos jovens talentos que estão em plena formação", observa Berman.
DÍVIDAS DOS CLUBES
Tanto Cury quanto Bertolucci acabaram se tornando credores de vários clubes, como Flamengo, Cruzeiro, Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Atlético-MG e Internacional. Cury entrou na Justiça contra alguns deles, como o Atlético-MG, para o pagamento das dívidas. O total das pendências dos clubes com os dois empresários está entre R$ 100 milhões e R$ 200 milhões.
"Essas dívidas são fruto da má gestão dos próprios clubes. O problema do Brasil é que essas entidades trabalham sem orçamento. Alguns, como o Flamengo, Athletico-PR e Grêmio, estão mudando isso. Mas esse entra e sai de presidentes acaba passando o problema de um para outro. Deveria ser como nos clubes europeus, onde há responsabilidade patrimonial para o dirigente. Com a transformação de algumas equipes em SAF (Sociedade Anônima do Futebol), a tendência é haver uma administração mais profissional, o que será bom para todos", diz Cury
O empresário nega que, com as dívidas dos clubes, ele passe a ter alguma ingerência na administração das entidades. "De forma alguma, não interfiro em nada. Nem quero ter esse poder. Para mim, as dívidas não são boas. E são piores ainda quando o clube não me paga. Também tenho uma empresa e dependo do planejamento, de fazer jus aos recebíveis. Se não também posso enfrentar dificuldades. Minha empresa não deve nada a ninguém e é um problema quando um fornecedor ou cliente não paga em dia", destaca.
Para Cury, o fato de ambos – ele e Bertolucci – concentrarem uma grande parte das negociações dos jogadores brasileiros é resultado de um trabalho intenso. "Sentamos no banco do avião, é isso. O segredo é o trabalho, é ir atrás, é ver de perto o que está acontecendo com algum jogador. Não é só fazer a transferência e pronto. Quando somos representantes, temos de estar juntos, dar suporte, trabalhar em todas as áreas, econômica, jurídica e de marketing", ensina.
Ao contrário de muitos jovens que se frustraram ao não serem jogadores, Cury diz ter realizado um sonho ao se tornar agente. A paixão pelo futebol não diminuiu, só se transformou. Ele não nega que ainda acompanha seu time, o Corinthians, de uma maneira especial. "Sim, continuo acompanhando o Corinthians, como torcedor. Não torço como antes, isso diminuiu. Sou corintiano, mas tenho de torcer também pelos jogadores que eu represento", completa.