Estadão

Protagonismo de Michelle expõe uso eleitoral de religião

A fé ultrapassou a pregação do altar para pautar discurso político na campanha eleitoral pelo Planalto – palácio "consagrado a demônios" antes da posse de Jair Bolsonaro (PL), segundo a primeira-dama Michelle. Manifestações da mulher do presidente e de aliados puseram em alerta analistas e políticos para os riscos da intolerância religiosa, enquanto o núcleo de campanha de reeleição de Bolsonaro tenta minimizar o impacto dos episódios.

Em um culto no domingo passado, Michelle afirmou que o Planalto, "hoje, é consagrado ao Senhor Jesus". Dois dias depois, em uma rede social, compartilhou vídeo que mostra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no ano passado, em um ritual do candomblé, o que foi associado às "trevas". "Isso pode, né? Eu falar de Deus, não", escreveu.

Pela Constituição, Michelle pode falar de Deus, como os adeptos de quaisquer crenças têm o direito de professá-las. A própria primeira-dama já sofreu preconceito, quando, após aprovação de André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal, no ano passado, orou em línguas – uma expressão da fé pentecostal – e foi alvo de comentários pejorativos.

As declarações recentes, no entanto, indicam o uso de um equipamento da administração pública – no caso, o Planalto – com objetivos privados e eleitorais, o que, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, fere o Estado laico. Para o cientista político Vinicius do Valle, diretor do Observatório Evangélico, Michelle pôs a relação entre política e religião em um patamar inédito no Brasil.

"Em matéria de religião, ritualística é tudo", afirmou Valle. "Ela (Michelle) faz um discurso com uma prosódia, um vocabulário, toda a performance de um pentecostal conduzindo o culto", disse. Ontem, a primeira-dama foi destaque em evento religioso no Rio. "O Estado é laico, sim, mas eu sou cristã. Nós vamos, sim, trazer a presença do Senhor Jesus para o governo", declarou Michelle na Marcha para Jesus, onde foi mais ovacionada do que o presidente.

BATALHA. O vídeo compartilhado por Michelle, segundo Valle, é tentativa de estimular eleitoralmente uma batalha espiritual. Nessa cruzada, ela não esteve só. Aliado do presidente, o deputado Pastor Marco Feliciano (PL-SP), que também replicou a gravação, escreveu que votar em Lula é fazer pacto com o maligno. Procurados, parlamentar e primeiradama não responderam.

Oscilante entre criticar Bolsonaro e buscar o apoio do presidente na corrida pelo Senado – iniciativa já frustrada -, a deputada estadual Janaina Paschoal (PRTB-SP) afirmou discordar dos posicionamentos de Michelle. "Tenho preocupação com o tom que a nossa primeira-dama está dando (à religião na campanha)", disse ela, que é professora licenciada da USP, lecionou a disciplina Direito Penal e Religião e, mesmo em meio a embates com o presidente, disse poder votar em Bolsonaro.

<b>LIBERDADE.</b> Aliados, por sua vez, chancelaram o desempenho da primeira-dama, nos púlpitos e nas redes. O senador Guaracy Silveira (Avante-TO), líder da Igreja do Evangelho Quadrangular, afirmou que a liberdade a qualquer culto é garantida constitucionalmente, mas, sobre a declaração de Michelle em relação ao Planalto, disse que "todo obscurantismo não pode ser levado ao palácio". "O palácio tem de ser abençoado por Deus, para que os líderes abençoados por Deus possam abençoar a Nação brasileira."

Entidades religiosas querem retratação. O Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras (Idafro), em relação ao vídeo compartilhado, avalia cobrar responsabilização do caso, cuja competência de investigação é do Ministério Público. "Do ponto de vista jurídico, é inaceitável", disse Hédio Silva Júnior, doutor em Direito e coordenador executivo do Idafro.

<b>ESTRATÉGIA.</b> Para integrantes do QG de campanha de Bolsonaro, Michelle teria apenas manifestado sua fé. Segundo eles, pesquisas qualitativas mostraram a primeira-dama popular entre as mulheres – segmento no qual o presidente enfrenta dificuldades. Ela atua ainda entre o público evangélico, no qual Bolsonaro tem avançado. De acordo com aliados do presidente, a intenção não é travar batalhas religiosas.

Conselheiro de Lula na comunicação com religiosos, o pastor Paulo Marcelo Schallenberger afirmou temer violência. "A preocupação é que tragédias como a de Foz do Iguaçu entrem no campo da religião", disse, ao se referir ao homicídio do petista Marcelo Arruda pelo bolsonarista José Guaranho. O pastor discute com a campanha petista uma reação "urgente" ao avanço de Bolsonaro. Entre as propostas estão a realização de um culto pentecostal em São Paulo e live na qual Lula exporia ações em favor da liberdade religiosa.

As mulheres, hoje, são a maioria no eleitorado, e os evangélicos, cerca de 30% da população. Em Minas, o presidente reverteu, em um mês, empate técnico com Lula entre evangélicos e, segundo pesquisa Genial/Quaest, está 18 pontos porcentuais à frente.

A cientista política Silvana Krause, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), disse que a questão religiosa é decisiva. "Os neopentecostais têm sido muito mobilizados. Isso fica claro com Michelle Bolsonaro resgatando o bem e o mal, a terra prometida."

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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