Diante do aumento do custo de vida na Argentina, o salário de 70 mil pesos (R$ 1.200) que Flávia Alves, de 40 anos, ganhava como supervisora de limpeza deixou de ser suficiente para sustentar a família. Pela primeira vez, ela precisou decidir entre pagar o aluguel ou dar de comer aos filhos.
Mãe solteira, deixou o apartamento de dois quartos, em San Telmo – bairro turístico da capital – e se mudou para uma casa alugada, na favela do Sapinho, em Ezeiza, região metropolitana de Buenos Aires. Flávia dorme com a filha no quarto e o filho, na cozinha. "O que a crise faz é expulsar os mais pobres para cada vez mais longe. Assim, ninguém vê a pobreza. A gente fica escondido", disse ela ao <b>Estadão</b>.
Com uma inflação de 83% até setembro, podendo chegar a 100% ao ano em novembro, muitas pessoas na mesma condição de Flávia optaram por trabalhar no lixão a céu aberto da cidade de Luján, o maior da Argentina, a 80 quilômetros da capital.
Ali, o número de catadores cresceu de 63 para 206, segundo Pedro Vargas, diretor de resíduos sólidos urbanos do município. Para ele, o aumento – quase o triplo do período pré-pandemia – foi impulsionado pelo novo coronavírus e a perda de poder aquisitivo.
"O lixo é algo que não para de ser produzido, então, sempre tem trabalho. O que estamos lutando é para que as condições melhorem, para que todos, cooperados ou não, tenham segurança", ressaltou.
Flávia e mais um grupo de argentinos, que sofrem com a inflação e a especulação imobiliária, se reúnem toda a terça-feira na sede do Movimento de Ocupantes e Inquilinos (MOI), uma organização de moradores sem-teto portenha.
Eles sonham em conseguir melhores condições de moradia. Flávia quer voltar a morar na capital com a ajuda do projeto Casa Transitória, no qual parte do aluguel é pago pelo movimento. "Antes eu levava 30 minutos até meu emprego, agora gasto 2 horas. Meus filhos mudaram de escola e a nossa vida piorou."
A maioria das pessoas ouvidas pela reportagem trabalha no lixão de Luján desde criança, levada pelos pais. Essa é a realidade de Pablo, de 24 anos, que está no lixão desde os 8. Com a ajuda do seu cavalo, que transporta o material coletado, o jovem pode receber até 9 mil pesos (R$ 165) em uma jornada de oito horas. "Com inflação ou sem inflação, a gente tem de comer."
<b>TRABALHO</b>
Pablo prefere vender o material coletado para um galpão de reciclados. "Pagam na hora. Ganho por dia. Prefiro assim." Outra opção é vender para a Cooperativa Céu Aberto, que participa da revitalização do lixão e paga o dobro no quilo dos materiais, mas mensalmente e por transferência bancária.
Muitos argentinos fogem dos pagamentos pelo banco, porque temem que o dinheiro desapareça com os impostos e a desvalorização do peso, explicou Vargas.
Segundo os recicladores de Luján, os materiais mais vantajosos são os metais e as garrafas de plástico, já os de menor valor são os vidros e os papelões. No aterro visitado pela reportagem, não foi registrado depósito de materiais orgânicos.
Homens e jovens são a maioria das pessoas no lixão de Luján. Joana Henrique, de 24 anos, era a única mulher trabalhando em meados de outubro. Ela começou no lixão aos 14 anos, levada pelo pai, que segue trabalhando lá até hoje. Há dois anos, contudo, a jovem decidiu aderir a uma cooperativa, o que, em sua avaliação, fez sua vida melhorar.
<b>INFLAÇÃO</b>
"Agora eu trabalho com roupas e equipamentos para ter mais segurança. Está muito melhor." Questionada sobre como a inflação afetou sua vida, a jovem não pensou muito: "A situação está difícil, não sei se mais do que antes. Mas temos de seguir em frente".
Sem as luvas usadas pela maioria dos recicladores, são os olhos de dona Claudia, de 62 anos, que vasculham no meio do lixão de Luján. Seu corpo magro e baixo, que caminha pra lá e pra cá, na companhia do filho, quer encontrar "mudas de tomate" para sua horta. Ela sempre foi faxineira, mas por causa de problemas de saúde não pode trabalhar e afirmou não receber aposentadoria nem auxílio do governo. Mora com dois filhos e agradece a Deus por não pagar aluguel.
"Não é sempre que a gente vem aqui, não. É a primeira vez. A gente nunca vem aqui", explicou. Quando o filho se afastou, Claudia começou a conversar com mais desinibição. "Eu nem deveria estar aqui, tenho doença autoimune", conta tossindo, referindo-se às condições insalubres. "Perdi muito peso. Mas o que a gente vai fazer?"
A população em situação de indigência na Argentina aumentou de 8,2% para 8,8% no primeiro semestre, o que representa 2,6 milhões de pessoas, segundo dados do Indec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censo). Indigente é quem não têm acesso às refeições proteicas e energéticas básicas.
Ainda segundo a pesquisa, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza diminuiu para 36,5% em relação ao segundo semestre de 2021, quando a taxa esteve em 37,2%. Apesar do aumento da indigência, a taxa de pobreza vem diminuindo desde 2020, quando chegou a 42%.
<b>CRIANÇAS</b>
O ponto mais frágil dessa realidade é a pobreza entre crianças e adolescentes de até 14 anos, que somam 5,5 milhões, cifra que representa quase 60% da população nessa faixa etária, segundo dados da ONU. Atualmente, para uma família ser considerada de classe média, em Buenos Aires, a renda deve ser superior a 160 mil pesos (R$ 3 mil).
Nas ruas de Buenos Aires é comum escutar que a população se acostumou com a inflação. Diagnóstico que provoca riso e desânimo, ao mesmo tempo. Alguns setores econômicos, como o turismo, cresceram em 2022.
Apesar de o número de pessoas empregadas ter subido para 12,6 milhões e o desemprego ser de 7%, grande parte dos postos de trabalho não tem registro, segundo o Indec. A informalidade é uma realidade na Argentina e nesse setor da economia os salários não acompanham o avanço da inflação.
Enquanto isso, na capital, a cidade mais rica do país, cafés, bares, restaurantes estão lotados. "O que explica essa contradição é a desigualdade social", diz o diretor da Sociedade Latino-americana e Caribenha de Economia, Júlio Gambina.
Diante dos constantes ciclos inflacionários nos últimos 30 anos, o país também sofre os efeitos da política cambial. Hoje, o dólar paralelo vale quase o dobro do oficial. Para manter as reservas no país e se tornar mais competitivo diante do dólar informal, o governo criou 15 cotações diferentes para a moeda americana e anunciou um pacote de medidas em agosto, com ajuste fiscal nos setores como energia, transporte, construção civil e até educação.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>