Há 70 anos, desde 1952, a revista britânica <i>Sight and Sound</i> convoca especialistas de todo o mundo – críticos, historiadores, cineastas, etc. – para organizar a lista dos melhores filmes de todos os tempos. Naquele ano, o número 1 foi Ladrões de Bicicletas, de Vittorio De Sica. Depois, de 1962 a 2002, Orson Welles liderou com Cidadão Kane. Em 2012, Hitchcock foi para o topo, com Vertigo/Um Corpo Que Cai.
Havia expectativa se o mestre do suspense conseguiria se manter em primeiro no poll deste ano. Hitchcock caiu para segundo, Orson Welles para terceiro. O novo melhor filme de todos os tempos é Jeanne Dielman. Saltou da 35.ª posição em 2012 para o número 1. Pela primeira vez uma mulher ocupa o primeiro lugar. Só por isso Chantal Akerman já está fazendo história.
Viagem a Tóquio, de Yasujiro Ozu, ficou em terceiro, seguido de Amor à Flor da Pele, de Wong Kar-wai; 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick e Beau Travail, de Claire Denis – outra mulher no topo. Não se pode exigir coerência numa lista feita com tantas e tão diferentes personalidades. Mesmo assim, é disparatada. Já houve um tempo em que predominavam questões sociais, políticas. Na lista atual, predomina a preocupação com a linguagem, e não apenas. Impossível não ver na irresistível ascensão de Chantal Akerman mais uma vitória das questões de gênero e movimentos como #MeToo.
Jeanne Dielman está ausente dos livros de críticas de Pauline Kael e Roger Ebert publicados no Brasil, mas aparece na série dos 1001 filmes para ver antes de morrer, de Steven Jay Schneider. No verbete agora dedicado ao melhor filme desses 127 anos de cinema – desde o experimento dos Irmãos Lumière, em 1895 -, Schneider adverte que se trata, declaradamente, de um filme difícil de ser apreciado e isso contribuiu para o status de obra marginalizada até pelos programadores de cinemateca. O nome refere-se a uma mulher que se prostitui para manter a vida burguesa. O filme de 1975 é interpretado por Delphine Seyrig e Jacques-Doniol Valcroze – sim, o diretor da nouvelle-vague. "O filme oferece uma visão tão árida do enfado burguês que faz o clássico de Michelangelo Antonioni, A Aventura, de 1960, parecer comédia hilária de Frank Tashlin", diz Schneider.
<b>Foco</b>
O cinema contou muitas histórias de prostitutas – de bom coração, criminosas e vitimizadas, perseguidas. Chantal foge a esse foco. Seu conceito é outro – o texto terá spoiler. O filme se passa durante três dias da vida dessa mulher. Viúva, mãe de um adolescente, profissão: prostituta. Não acontece muita coisa. Chantal faz uma espécie de crônica desses três dias a partir de atividades domésticas banais, filmadas em tempo real, por meio de planos estáticos. Ocasionalmente, atende a clientes. As duas últimas cenas fazem toda a diferença nessa narrativa de uma vida burguesa marcada pelo enfado. Jeanne mata o cliente com uma tesoura, que usa como punhal. Depois, senta-se na sala às escuras. Não revela nenhuma emoção.
O filme dura quase quatro horas, e a duração é importante. Andrei Tarkovski definia o cinema como a arte de esculpir o tempo. Chantal também joga com o tempo, mas numa perspectiva diferente. O que lhe interessa é mostrar o enfado, a alienação, o vazio que levará Jeanne ao gesto radical. O fato de Chantal, que morreu em 2015, assinar o hoje melhor filme de todos os tempos talvez inaugure uma nova era. Feminismo, minimalismo, correção política, radicalidade autoral. A lista de dez mais tem o olhar de mestre Ozu sobre a família, o pai, a mãe, os filhos, noras e genros. Nada mais diferente desse olhar que a frieza assumida de Chantal Akerman. Sempre houve um culto a ela. Pelos próximos dez anos, até a futura lista de 2032, muito haverá para discutir sobre o que é o cinema, segundo a autora belga.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>