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Documentário baseado em Grande Sertão: Veredas é destaque na final do Cine PE

Houve mais de 700 inscrições de filmes – exatamente 731 títulos – para as mostras competitivas do 26º Cine PE – Festival do Audiovisual, que ocorreu no Recife, de 9 a 14. Dessas centenas, os curadores Edu Fernandes e Nayara Renaud selecionaram 18 títulos que formaram as três mostras – seis curtas pernambucanos, seis curtas nacionais e seis longas. Houve problemas no meio do caminho. Anunciado para ocorrer no Cine São Luiz – um dos mais belos remanescentes dos cinemas de rua no Brasil -, o festival foi duplamente atropelado pelas circunstâncias.

O restauro do São Luiz só permitiu a utilização da sala no sábado, 10, e domingo, 11. O evento migrou para o Teatro do Parque, mas uma queda de energia no Centro do Recife iniviabilizou o sistema de projeção. O festival foi para um terceiro espaço – o Cinema do Porto, no prédio do Porto Digital -, mas a essa altura havia sido uma noite de exibição. O Cine PE terminou, como previsto, na quarta à noite, mas o júri deliberou na quinta e o anúncio dos vencedores foi feito na sexta, 16, virtualmente. A premiação – presencial – será no festival do ano que vem.

Venceu, na categoria de longas, a ficção <i>Casa Izabel</i>, de Gil Baroni. Com todo respeito pela decisão soberana do júri, havia opções melhores. O próprio júri, integrado por Bete Mendes, Tizuka Iamasaki, Emanoel Freitas e Luiz Carlos Lacerda, atribuiu o prêmio de direção ao doc <i>Gerais da Pedra</i>, preferido pelo repórter do <b>Estadão</b>. Tem havido um revival de João Guimarães Rosa. A obra-prima do grande escritor – <i>Grande Sertão: Veredas</i>, publicada em 1956 – virou montagem teatral de Bia Lessa, e a própria diretora filmou seu espetáculo. A versão para cinema permanece inédita.

Para 2023, o grande sertão e suas veredas prometem invadir as telas do Brasil. Que seja mais um estímulo para que o público, ressabiado na pandemia, retorne às salas. Guel Arraes e Jorge Furtado trabalham na pós-produção de sua versão da saga de Riobaldo e Diadorim, que transpuseram para uma comunidade do Rio, na atualidade. A essas duas versões de <i>Grande Sertão</i> soma-se agora a terceira. <i>Gerais da Pedra</i> retraça as veredas da mineiridade, revisitando o mito de Diadorim. A grande interrogação que percorre o filme assinado pelo trio Paulo Júnior, Gabriel Oliveira e Diego Zanotti é: existiu essa figura, quem, ou qual foi a inspiração para Guimarães Rosa?

O feminino compõe grandes enigmas da literatura brasileira. Existe Capitu, com seus olhos de ressaca. Traiu Bentinho no clássico <i>Dom Casmurro</i>, de Machado de Assis? Paulo César Saraceni e Luiz Fernando Carvalho fizeram filme e série para abordar o assunto. Mais recentemente, houve a <i>Capitu</i> de Júlio Bressane. Talvez sejam necessários muitos filmes – no mínimo três – para dar conta desses mistérios. Bia Lessa, Guel e Jorge investigam outro mito. Em 1985, uma série escrita por Walter George Durst e dirigida por Walter Avancini, com Luiz Fernando Carvalho como assistente, já tentava dar conta do mistério.

O mistério – de <i>Polichinelo</i> – é que, a essa altura, todo mundo sabe que Diadorim, com a perturbação que provoca em Riobaldo, é uma mulher que se disfarça como homem nas veredas do sertão. Como e por que isso ocorre? Talvez o mistério seja mesmo coisa da literatura. Com seu domínio da escrita, na forma como reinventa a cultura popular, e as palavras, Rosa consegue manter o leitor hipnotizado. O cinema trabalha com o concreto. Começa e se dilata na epiderme dos atores e não há como esconder a evidência. Diadorim, na minissérie, é mulher – Bruna Lombardi, no auge.

Paulo, Gabriel e Diego conheceram-se durante uma caminhada pelo sertão mineiro de Guimarães Rosa. Muita gente não sabe disso, mas em julho realiza-se essa expedição no noroeste de Minas. São cerca de 200 km de andança, visitando os lugares que inspiraram o escritor. É sabido que Rosa fez esse caminho com seu caderninho, anotando tudo. Queria saber da paisagem, mas também do povo geraizeiro. E assim teceu seu livro, traduzido para diversas línguas. A edição francesa é um calhamaço e tanto.

Além do romance, propriamente dito, tem dois apêndices volumosos, explicando o que é o grande sertão e o que são as veredas. É um pouco o que fazem Paulo, Gabriel e Diego. O primeiro a fazer O Caminho do Sertão foi Gabriel, em 2014. Paulo e Diego o seguiram no ano seguinte. Começaram a dialogar, a trocar ideias. Gabriel veio da pesquisa, Diego é documentarista, trabalha com a imagem, Paulo trabalha com o som. É impossível, para eles mesmos, precisar em que momento decidiram transformar a caminhada em filme. No catálogo do Cine PE, <i>Gerais da Pedra</i> é resumido sucintamente – "O mito literário, a realidade inspiradora, a vida mediada pela reverberação ficcional. Um filme sobre encantamento."

O trio voltou depois à procura de locações, buscando os personagens, como havia feito o próprio Guimarães Rosa. Encontram figuras maravilhosas. Se Diadorim já encarna o mistério da mulher-macho – houve uma Diadorim de verdade? Quem era, onde nasceu? -, entre os muitos entrevistados do doc está a mulher que reagiu à violência masculina e deu uma facada no marido. Ela reflete – "Ainda gosto dele, afinal, é pai dos meus filhos, mas amor não sinto mais." Paisagem + fala compõem a mineiridade.

O trio colocou dinheiro do próprio bolso na fase de captação das imagens. Com a produtora Tatiana Mitre buscaram recursos para a finalização. As dificuldades não aparecem na tela, onde, o que ressalta, é a beleza das imagens. O título já carrega seu mistério. "Tudo o que se planta dá frutos. Só uma coisa que não. Onde se viu plantar pedra? Pois aqui isso aconteceu. Tá vendo ali? São pedras que nasceram de outras que ali foram enterradas."

Definido como romance experimental modernista, <i>Grande Sertão: Veredas</i> carrega o próprio mistério nas apropriações e referências assumidas por Rosa. Paulo, Gabriel e Diego agora dão voz ao povo geraizeiro que inspirou o escritor. Riobaldo é o jagunço protagonista. É tão atraído pelo enigmático Reinaldo que tenta penetrar nos seus pensamentos.

Desse Reinaldo quase inventado surge a figura de Diadorim. A grande questão que permanece secreta, e cada leitor/espectador a formula no seu inconsciente, é: Riobaldo ama Reinaldo ou Diadorim? A identidade de gênero é essencial, visceral no romance. Atravessa o doc. Rosa será o nome do cinema brasileiro em 2023.

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