Nunca se sabe se isso pode ajudar ou não, mas do júri presidido por Jeremy Irons participa o ator italiano Luca Marinelli, premiado em Veneza, no ano passado, por Martin Eden – que deve estrear na sequência nos cinemas brasileiros. Marinelli bem poderia esforçar-se para garantir o prêmio de interpretação masculina para seu compatriota, Elio Germano. Um candidato a melhor ator logo no segundo dia? Se fosse um ator de língua inglesa, Germano já estaria no Oscar de 2021. Uma interpretação daquelas que a Academia gosta. Germano transformou-se fisicamente para incorporar seu personagem.
Volevo Nascondermi, que se pode traduzir como Gostaria de Me Esconder, inspira-se livremente na vida de Antonio Ligabue. Na vida e na arte, ele atravessou o fascismo como o grande solitário da arte italiana. Rejeitado pelo pai, sofrendo bullying na escola, Toni, ou Anton, foi sempre o diferente – e execrado como tal. Dotado de sensibilidade e talento excepcionais, esse autodidata lembra um pouco personagens como o garoto selvagem de François Truffaut, ou o Kaspar Hauser cujo enigma Werner Herzog decifrou num de seus mais belos filmes. Qual é o sentido da arte? Criar beleza, servir como instrumento de investigação da realidade? Van Gogh, numa carta ao irmão Theo, dizia que pintava para consolar – a si mesmo e à humanidade, porque a vida pode ser dura.
Como Van Gogh, Ligabue viveu em instituições. Foi interno como louco. Queria uma vida dita normal – uma mulher, uma casa. Tudo isso lhe foi negado. O filme de Giorgio Diritti resgata essa figura rara de revolucionário da arte. Germano é extraordinário no papel. Além de Marinelli, o júri é presidido por outro ator, e dos maiores – Jeremy Irons. A 70ª Berlinale mal começou e a Itália já tem chance – está cavando seu espaço.
Primeiro latino da competição – são dois, e o outro é o brasileiro Todos os Mortos/All the Dead Ones, de Marco Dutra e Caetano Gotardo -, El Prófugo, de Natalia Meta, é uma coprodução entre Argentina e México. O elenco é ótimo – Cecilia Roth, Daniel Hendler, Érica Rivas, etc. -, mas a sensação, no fim da sessão de imprensa, era do mais puro estranhamento. Um filme de gênero – até aí, tudo bem -, mas o que faz esse "intruso" na mostra competitiva de um dos maiores festivais do mundo?
De cara, a protagonista sofre um trauma violento, que somente acentua um problema que já possui – a desordem do sono. Inés está sempre imersa em pesadelos. Quem são essas figuras, não se sabe se reais ou imaginadas, que parecem querer dominar sua mente? Desde a primeira cena, quando a protagonista está dublando um thriller/terror erótico, o sexo faz-se presente como motor do relato e, talvez, da vida de Inés. A par de seu trabalho como dubladora, ela canta – é soprano num coro que se apresenta num teatro. Será só mera coincidência, ou Natalia Meta quis fazer a sua particular versão de O Fantasma da Ópera? Trata-se de um caso de possessão, que termina – não é spoiler – com uma heroína empoderada por meio do sexo. O que representa/são esses volumes/vermes que correm por baixo da roupa acetinada de Inés, até sua genitália?
Por menos atraente que seja o filme, talvez sua justificativa para estar aqui seja o fato de apresentar um vago parentesco com um clássico de David Cronenberg – Gêmeos, Mórbida Semelhança, interpretado por ninguém menos que Mr. President, Jeremy Irons.
O festival deste ano inclui homenagens a Helen Mirren e King Vidor. A atriz recebe um Urso de Ouro especial de carreira – na quinta, 27 -, com direito a uma aula magna (In Conversation), no dia anterior. Uma seleção de filmes, incluindo O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e o Amante, de Peter Greenaway, e A Rainha, de Stephen Frears, permite ao público refrescar a memória de quão grande é a arte de Helen Mirren. Quanto ao rei Vidor, sua carreira faz a ponte do período silencioso ao sonoro. Foi um dos primeiros autores "sociais" de Hollywood, com filmes como The Crowd, The Big Parade e Hallelujah. Fez clássicos do melodrama (Stella Dallas, a Mãe Redentora) e do western (Homem Sem Rumo). Ofereceu a Jennifer Jones papéis inesquecíveis – em Duelo ao Sol e Ruby Gentry/Fúria do Desejo. A Berlinale apresenta 37 de seus 54 filmes em cópias restauradas, uma retrospectiva que, por si só, valeria a vinda a Berlim em 2020.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>