Debaixo de uma madrugada chuvosa, sete escolas de samba se apresentaram no Anhembi no segundo e último dia de desfiles do Grupo Especial do Carnaval de São Paulo. Enredos sobre o Nordeste e valorização da história dos negros africanos marcaram a segunda rodada de apresentações, que contou com as exibições da campeã Mancha Verde e da tradicional Mocidade Alegre. As duas cumpriram as expectativas e foram os destaques da noite, que também contou com bons desfiles de Império de Casa Verde e Acadêmicos do Tucuruvi.
A Estrela do Terceiro Milênio, estreante no grupo especial do Carnaval de São Paulo, abriu os desfiles da noite de sábado, 18, com o enredo Me dê a sua tristeza que eu transformo em alegria. Um tributo à arte de fazer rir, a escola do Grajaú, campeã do Grupo de Acesso de 2022, organizou uma apresentação para mostrar a importância do humor e a história da comédia.
O riso dos carnavalescos da escola foi ameaçado por alguns minutos. A falha em um equipamento de um dos carros alegóricos levou a escola a se atrasar 15 minutos para entrar na passarela, mas o atraso não deve gerar penalização porque a terceira sirene, que oficializa o início da apresentação, ainda não havia sido acionada. Apesar da chuva e dos transtornos iniciais, a escola conseguiu cruzar a avenida sem estourar o tempo determinado.
No desfile da debutante, muitas referências do humor brasileiro foram lembradas, como a TV Pirata e personagens interpretados por Jô Soares, Chico Anysio e Tom Cavalcante. O enredo do riso e da risada também atraiu artistas do humor para desfilar junto com a Estrela do 3° Milênio, como Marcelo Adnet. O ator Paulo Gustavo, morto em 2021 vítima da covid-19, também foi representado.
Segunda a entrar na passarela, a Acadêmicos do Tucuruvi homenageou Bezerra da Silva, sambista, compositor e cantor, que também era conhecido como o embaixador dos morros e das favelas. E foi essa relação do artista com a vida do povo, tão explorado por Bezerra nas suas composições, que a escola retratou em seu desfile. O último carro alegórico reproduziu uma escultura de Bezerra da Silva com os braços estendidos na frente de uma cruz segurando uma faixa com a frase: "Salve o povo da favela".
Os filhos de Bezerra da Silva também desfilaram com a Unidos do Tucuruvi. Italo Bezerra disse ao Estadão que a apresentação foi à altura da história do seu pai. "Estou muito feliz e acho que ele foi muito bem representado no desfile. Eu e meu irmão viemos do Rio de Janeiro e vimos que toda a comunidade e arquibancada abraçaram a ideia. Foi uma honra".
Debaixo de chuva e muita fumaça verde de sinalizadores, a Mancha Verde escolheu levar o Nordeste para São Paulo. Com um desfile ousado, a atual campeã do Carnaval de São Paulo combinou elementos do xaxado com o samba para fazer uma apresentação bastante prestigiada nas arquibancadas.
Além das alegorias caprichadas em referência aos cangaceiros, as rendeiras, a Luiz Gonzaga – como no último carro alegórico – o espetáculo da Mancha Verde também marcou pela sonoridade. A mescla dos ritmos do samba com o do forró conseguiram mostrar que a escola cumpriu com a proposta apresentada em seu enredo.
Outro momento marcante da apresentação foi a pausa que a bateria, guiada por Viviane Araújo, fez durante o desfile. O silêncio com a suspensão da batucada deu espaço para a plateia cantar o samba-enredo à capela. Mesmo com a empolgação das arquibancadas, o presidente Paulo Serdan se mostrou mais cauteloso. "Estamos confiante de que fizemos um bom desfile, mas temos que esperar as informações e ver se não há nenhuma punição. Sempre tem algo", disse.
A quarta escola a desfilar foi Império de Casa Verde. Para o Sambódromo, a agremiação levou o enredo Império dos batuques – um Brasil afromusical com objetivo de mostrar como diversos gêneros musicais ouvidos hoje no Brasil são influenciados por batuques africanos. O funk em São Paulo, o timbau em Salvador e o "reggae lá do Maranhão", como cantou o samba-enredo, são alguns dos exemplos.
Uma das escolas mais aguardadas foi a Mocidade Alegre, a quinta a desfilar pela passarela. E a agremiação levou para o sambódromo a trajetória do moçambicano Yasuke, o primeiro samurai negro da história do Japão. O nome do guerreiro foi apresentado ao público no começo do espetáculo. Cada letra foi escrita em taikos, tambores orientais, que eram girados em 180° que, após o movimento, revelavam a palavra "morada", apelido da escola.
As representações das gueixas e dos samurais japoneses indicaram o capricho e o cuidado da Mocidade com a fantasia. Nos carros-alegóricos, um guerreiro sendo banhado por uma queda dágua e o dragão abraçado a uma espada girando sobre a alegoria também impressionaram o público.
O último carro alegórico, com um menino negro segurando um origami e um livro, trouxe a mensagem que todas as crianças, assim como Yasuke, podem ser quem elas desejam. E foi esse sentimento que atingiu Tiago Modesto, de 13 anos, que teve o rosto gravado em uma das fantasias usadas pela Mocidade no desfile.
Ao lado de sua mãe, Andrea Modesto, coordenadora da ala das crianças da agremiação, ele contou à reportagem que é gratificante – e também "maneiro" – ter o rosto em uma fantasia. "Ainda mais quando se fala da história de um samurai", diz o garoto, que desfila pela Mocidade desde os 6 anos. "O (desfile) desse ano foi um dos mais especiais".
Pai e outros irmãos de Tiago também desfilam há anos pela agremiação, que "abraçou a família", diz Andrea. Ela conta que foi emocionante quando soube que o rosto do filho foi escolhido para estampar a fantasia. "O Thiago é um menino determinado, uma criança de Heliópolis que representa o recado passado pela escola: que as pessoas negras podem ser quem elas quiserem".
Em um desfile de questionamentos existenciais, a Águia de Ouro levou pra passarela muitos elementos infantis para retratar o enredo Um pedaço do céu, que trazia uma discussão sobre os sonhos e desejos ao longo da vida. Bonecas, unicórnios e princesas se misturaram com alegorias que expeliam um cheiro adocicado que podia ser sentido no sambódromo.
No desfile que fechou o carnaval de São Paulo, a Dragões da Real não deu bola para a chuva nem para as arquibancadas já bastante vazias. A escola mostrou disposição para fazer sua homenagem a João Pessoa.
O enredo, que explorava o fato de a capital paraibana ser a primeira cidade do continente a receber o sol, até combinou com o horário do desfile, mas não com o clima cinza e chuvoso que acompanhou o desfile da agremiação na manhã de domingo. Mesmo assim, a escola tricolor cantou de forma a fazer São Paulo acordar em clima de Festa Junina em pleno mês de fevereiro.