Estadão

Confrontos entre indígenas e fazendeiros deixam 2 mortos nos 3 primeiros meses do governo Lula

Além da retomada das invasões pelos movimentos dos sem terra, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terá de lidar com um recrudescimento nos conflitos entre indígenas e produtores rurais fora da região amazônica neste início do seu governo. Em pouco mais de três meses, confrontos armados resultaram na morte de dois índios pataxós no sul da Bahia e ao menos três feridos no Mato Grosso do Sul. Produtores rurais acusam os índios de retomar as invasões, atear fogo em plantações e destruir benfeitorias em fazendas ocupadas.

Em janeiro, três fazendas foram invadidas por indígenas em Porto Seguro, Itabela e Prado, no sul da Bahia. Numa delas, um suposto indígena fez um vídeo enquanto colocava fogo em reflorestamento de eucalipto. No dia 17 de janeiro, os indígenas Nawir Brito de Jesus, de 17 anos, e Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25, da etnia pataxó, foram assassinados a tiros na BR-101, quando se deslocavam para uma fazenda ocupada pelo grupo. No dia seguinte, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, criou um gabinete de crise para acompanhar os conflitos. Já no dia 20, a ministra esteve na região e cobrou mais policiamento à Polícia Federal para a proteção dos índios.

Um dossiê enviado no final de janeiro pelos sindicatos de produtores rurais de Porto Seguro, Teixeira de Freitas, Prado, Itamaraju e Eunápolis ao governo da Bahia denunciou o crescimento de invasões, depredações, ameaças e atos violentos contra proprietários rurais e seus funcionários. Conforme o documento, foram identificados falsos índios atuando como milicianos para os indígenas. A Associação dos Produtores de Eucalipto do Extremo Sul da Bahia (Aspex) divulgou nota apontando a "absoluta insegurança que se instaurou a partir da verdadeira ameaça de incêndios florestais, invasões e depredação das propriedades rurais produtivas nesta região".

Os indígenas alegaram estar "retomando" as terras de seus antepassados, sem que houvesse uma decisão legal. Até o final de janeiro, os sindicatos contabilizavam mais de 13 mil hectares invadidos e cerca de 10 mil hectares sob ameaça de invasão, além de mil pessoas desalojadas. Segundo o dossiê, foram ocupadas áreas de plantio, culturas em produção e outras aguardando colheita, incluindo plantações de café, pimenta do reino, cacau, banana, mamão papaia, maracujá, seringueira e pecuária.

O documento chama a atenção para o longo tempo de análise, pela Fundação Nacional do Índio (Funai), do processo administrativo de legalidade ou não da ampliação das terras indígenas de Barra Velha e de Comexatiba. Enquanto não são cumpridas todas as etapas do processo, a comprovação de sua legalidade, incluindo a indenização de benfeitorias, não se pode declarar a área como terra indígena. Para os ruralistas, os processos de demarcação estão suspensos até que o Supremo Tribunal Federal julgue o Marco Temporal, que define como terra indígena aquela já ocupada por povos originários na promulgação da Constituição de 1988.

<b>Territórios degradados</b>

Do lado indígena, as lideranças dizem que, com a demora na demarcação, seus territórios estão sendo degradados pelo desmatamento, a destruição da biodiversidade e a contaminação das águas, criando uma urgência para as retomadas. A indefinição agrava os conflitos. Em setembro de 2022, o adolescente pataxó Gustavo Conceição da Silva, de 14 anos, foi morto por pistoleiros que atacaram com armas de alto calibre uma ocupação iniciada por sua comunidade dias antes na fazenda Therezinha, em Prado. O crime ainda é investigado.

No dia 21 de março, 70 lideranças indígenas foram a Brasília para cobrar a aceleração da demarcação de territórios dos tupinambás e tumbalalás na região. Os relatórios de identificação foram publicados em 2009, mas os processos pararam na gestão Bolsonaro. Após se reunir com as lideranças, a ministra disse que 25 terras indígenas terão assinadas as portarias declaratórias este mês, entre elas, três dos povos da Bahia: a TI Tupinambá de Olivença, a TI Tupinambá Bel Monte e a TI Barra Velha do Monte Pascoal, do povo pataxó.

Na última semana de fevereiro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Articulação das Organizações dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) pediram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), que interceda pelos pataxó de Barra Velha e Comexatiba, que enfrentam "ameaças, cercos armados, tiroteios nas comunidades, difamações e campanhas de desinformação por parte da mídia local e instituições públicas".

O conflito no Sul da Bahia se arrasta há décadas. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Terra Indígena Barra Velha foi demarcada na década de 1980, com 8.627 hectares, deixando de fora grande parte do território de ocupação tradicional pataxó. A comunidade indígena, então, passou a reivindicar a ampliação da área. Em 2009, a Funai revisou a demarcação e ampliou os limites do território, que passou a ter 52.748 hectares. Os produtores rurais alegam irregularidades no processo de ampliação da Terra Indígena de Barra Velha e Comexatiba.

<b>Outro foco de conflitos</b>

Em Mato Grosso do Sul, no dia 26 de fevereiro, indígenas guarani-kaiowás invadiram uma fazenda, em Rio Brilhante, alegando que ela faz parte do território de Laranjeira Nhanderu, reivindicado pelos índios. A tropa de Choque da Polícia Militar foi acionada e houve confronto. Três indígenas ficaram feridos. No dia 3 de março, os indígenas ocuparam a sede da Fazenda do Inho, no mesmo município. Trabalhadores rurais disseram à polícia que os índios agiram com violência.

No dia 10 de março, a ministra Sônia Guajajara esteve na região e foi à capital, Campo Grande, para uma reunião com o governador Eduardo Riedel (PSDB). Além de ministros e deputados, o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), Marcelo Bertoni, participou do encontro. Riedel disse que a polícia estadual vai agir sempre para evitar confrontos e se dispôs a adquirir algumas áreas específicas para facilitar a demarcação, em parceria com a União.

Duas semanas depois, trabalhadores rurais a mando de fazendeiros atacaram a comunidade indígena Kurupi Santiago Kuê, em Naviraí, sudeste do Estado, usando tratores para destruir os barracos. Um helicóptero sobrevoou a área e fez disparos, mas ninguém ficou ferido. Conforme o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Igreja Católica, policiais militares deram cobertura aos agressores, o que foi negado pela PM.

O Mato Grosso do Sul é o segundo Estado com mais assassinatos de indígenas no Brasil, atrás apenas do Amazonas, segundo um mapa da violência contra povos indígenas elaborado pelo Cimi. Em 2021, quando o último relatório foi publicado, o país registrou 335 ações violentas contra índios, culminando em 176 mortes. Dessas, 38 aconteceram no Amazonas, 35 em Mato Grosso do Sul e 32 em Roraima. No ano anterior, haviam sido 304 atos de violência, com 182 assassinatos.

<b>Diálogo</b>

O governo do MS informou que, após o início de um diálogo com o governo federal sobre a questão indígena, está avançando para solucionar os problemas dos povos originários no Estado.

Primeiro governador autodeclarado indígena no país, Jerônimo Rodrigues (PT), governador da Bahia, informou que, embora tanto a demarcação quanto os casos de violência em terras indígenas sejam responsabilidades da União, estabeleceu um canal de diálogo com o governo federal, reforçou o policiamento estadual e o Estado participa de uma força-tarefa para garantir a segurança na região.

Questionados sobre o recrudescimento dos conflitos entre indígenas e produtores rurais fora da Amazônia, o Ministério dos Povos Indígenas e a Funai não deram retorno.

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