A Turner enviou uma carta no dia 3 para os oito clubes com quem tem acordo até 2024 para a transmissão em TV fechada dos jogos do Campeonato Brasileiro 2020. A partir daí, haverá uma série de negociações para o rompimento do contrato. Portanto, é provável que os clubes readquiram seus direitos e os repassem para a Globo. Foi a segunda vez que a empresa americana notificou os times. A primeira ocorreu em novembro do ano passado. Naquela ocasião, apenas o Athletico-PR se dispôs a responder.
A Turner é um conglomerado de mídia dos EUA fundado em 1970 por Robert Edward "Ted" Turner. Em 2015, seu braço esportivo descobriu o Brasil e desde então tenta entrar na disputa das transmissões das partidas. No ano passado, conseguiu colocar no ar sua primeira edição do Brasileirão, com os diretos comprados por R$ 140 milhões de sete equipes para quem mandou a carta – o Coritiba estava na Série B. A carta é sigilosa.
O Estado entrou em contato com representante da empresa e com alguns dos clubes notificados. Dos dois lados esbarrou na informação de que o teor do documento é confidencial, com multa pesada para quem abrir o bico e quebrar a cláusula. Mesmo aqueles dirigentes mais solícitos se recusaram a contribuir com a reportagem. "Posso falar de tudo, menos desse assunto. Peço desculpas" disse ao Estado o presidente do Fortaleza, Marcelo Paz. Na mesma linha responderam seus pares do Bahia e Ceará. O presidente do Santos, José Carlos Peres, abriu o jogo. "Os clubes estão perdendo muito dinheiro com a Turner e penso que ela também está perdendo dinheiro com o futebol brasileiro. Vamos ouvir e negociar. Penso que os lados estão querendo a rescisão", disse.
A CBF já informou em outras ocasiões que ela não entra nessa discussão. Apenas faz a tabela das 38 rodadas do torneio. Clubes e emissoras de TV têm liberdade na negociação. "Ela nem sabe o que foi assinado", disse fonte que pediu para não ser identificada.
Na carta, a Turner aponta para uma série de regras contratuais que os clubes estariam quebrando, principalmente no que diz respeito às transmissões dos seus jogos na TV aberta – os oito clubes assinaram com a empresa de Ted Turner para mostrar as partidas na TV fechada (Esporte Interativo, TNT e Space) e com a Globo para a TV convencional. Na guerra das transmissões, com jogos liberados para as praças, TVs abertas e fechadas, horários mudados em função desses acordos, a Turner não estaria mais contente com seus números de audiência e faturamento. Nem mesmo com a atitude de seus parceiros do futebol brasileiro. A empresa acredita que os clubes não honraram seus compromissos e se dobraram para exigências da outra emissora.
Ela espera o momento em que será pressionada pelos parceiros comerciais. Viu sua audiência despencar em até 85% no fim de 2019, o que inviabilizaria seus negócios no País. Não teria mais sentido em ficar. A empresa também tem a percepção de que os clubes estão forçando a barra para que o contrato seja rescindido antes de o torneio começar. A segunda carta tem essa finalidade: encontrar caminhos. Entenda-se fazer um acordo sem perdas. O Estado teve acesso a uma notificação da empresa.
"A Turner enviou na sexta-feira, 3 de abril, uma notificação aos clubes com os quais mantém contrato para exibição da Série A do Campeonato Brasileiro 2020. Essa carta reitera o que já foi colocado aos clubes em novembro de 2019, sobre o que não tivemos quase nenhuma resposta, e pede que venham conversar com a Turner para solucionar questões pendentes. Há certas obrigações que a Turner deseja reforçar incluindo compromissos assumidos pelos clubes que são essenciais para que a Turner crie um modelo de negócios sustentável. A Turner propõe uma nova conversa, ao mesmo tempo em que não descuidará das ações necessárias à defesa de seus direitos. A Turner sempre privilegiou o diálogo e acredita numa solução conjunta."
CAMINHOS – Daí a necessidade de se reunir com os clubes para saber o que eles querem. O presidente do Santos foi claro ao afirmar que a quebra de contrato é o melhor caminho. Há insinuações de que as duas partes gostariam de romper o acordo, cujas cláusulas contêm multa para os dois lados. Mas nenhuma deles quer dar o primeiro passo, talvez com receio de como isso poderia ser interpretado juridicamente.
De um lado há uma empresa americana cuja cultura, além de entreter, é ganhar dinheiro. Nenhum negócio se mantém de pé gastando mais do que se ganha. Esse pode ser o xis da questão para a Turner no Brasileirão. A empresa nega que esteja tirando o pé do futebol. Ela é dona, por exemplo, dos direitos da Liga dos Campeões. Na Argentina, divide o Campeonato Nacional com a Fox Sports. No Chile, outro país da América do Sul, detém os direitos exclusivos de transmissão. Mas há um impasse inegável entre a Turner, seus objetivos e os clubes com quem tem contrato no Brasil.
Não seria demais supor que a empresa entende que os times quebraram regras do acordo, inviabilizando ganho e crescimento da companhia, de modo a abrir brechas para sanções previstas e até o rompimento do contrato, com ônus para os times. Se se sentir prejudicada, pode exercer o direito de ser ressarcida. É isso que os clubes temem e vão tratar de discutir a partir desta semana. Ninguém quer pagar ninguém.
DINHEIRO – o dinheiro do futebol desapareceu com o cancelamento das atividades, disputas e torneios por causa da pandemia do novo coronavírus. As empresas estão com dificuldades para honrar seus compromissos. A Globo, conforme noticiado, parou de pagar para os times que disputam os Estaduais. Todos os torneios foram interrompidos sem data para voltar.
Os times envolvidos são Palmeiras, Santos, Internacional, Bahia, Ceará, Coritiba, Fortaleza e Athletico-PR. O rompimento, independentemente das discussões jurídicas que isso vai ocasionar, dará de volta aos clubes o direito da transmissão de suas partidas em TV paga. A partir daí, eles poderão revendê-los. A Globo/SporTV é o caminho mais natural, mas não o único. Qualquer outra emissora de canal fechado poderia entrar na negociação.
Para os clubes, a quebra de contrato com a Turner não seria um desastre se eles conseguirem repassar os direitos para o SporTV imediatamente. No ano passado, estima-se que eles ganharam R$ 23 milhões cada um. O Santos diz que ganhou pouco menos do que isso. Palmeiras e Inter teriam recebido cotas maiores também pelo desempenho e audiência.
"A situação é bastante obscura nesse momento. Os clubes estão avaliando o que tudo isso significa. Mas não podemos entrar em detalhes. O documento da Turner é sigiloso. Tudo vai depender da vontade das partes", disse ao Estado o presidente do Ceará, Robinson de Castro. Ele ressaltou ainda que seu time não fez qualquer adiantamento de verba nesta temporada. Castro acha impossível que os clubes consigam se sustentar por mais dois meses. "Vamos ficar vivos? Vamos. Vamos pagar todos as nossas contas? Não."
PRÓXIMOS PASSOS – Os times parceiros da Turner vão se reunir para levar uma posição única para a empresa, apesar de muitos deles negociarem individualmente seus contratos. A empresa americana paga 50% do valor combinado na abertura da disputa, 25% dependendo da audiência e outros 25% de acordo com o desempenho em campo. Time ruim recebe menos. A avaliação é feita pela classificação final da competição – embora tenha acordo com times da Série B, essas regras só valem para a disputa da primeira divisão.
A discussão entre clubes e Turner ocorre num momento péssimo do futebol brasileiro, em que todas equipes estão mais enfraquecidas por causa da paralisação dos torneios. O Bahia espera conseguir sobreviver em meio a essa pandemia sem ter de passar o pires.
Da mesma forma o Fortaleza, do técnico Rogério Ceni, faz de tudo para honrar seus compromissos financeiros. De acordo com seu presidente, Marcelo Paz, o clube reduziu 25% o salário de seus jogadores, dirigentes e funcionários da comissão técnica, com a promessa de pagar o valor equivalente quando conseguir enxergar luz no fim do túnel. Seus patrocinadores ainda não caíram fora. Espera-se que isso não aconteça. "Em abril, os jogadores abriram mão de 10%, dinheiro que não vamos precisar pagar."
Tudo isso ajuda, mas não resolve o problema com a Turner. Se a empresa cair fora, os clubes ficarão órfãos, com seus direitos de transmissão menos valorizados. O Brasileirão estava marcado para começar no primeiro fim de semana de maio, dias 2 e 3. Essa data será adiada em função do coronavírus. Até lá, as decisões serão encaminhadas.