Atletas da Série B mudam postura e se unem em protestos contra salários atrasados

A reta final da Série B do Campeonato Brasileiro não ficou marcada apenas pelo título da Chapecoense conquistado com um gol no último minuto e pelos acessos de América-MG, Juventude e Cuiabá. Cansados de lidar com salários atrasados e outras pendências financeiras, jogadores do próprio time campeão e de Avaí, Cruzeiro e Ponte Preta decidiram nas últimas semanas fazer algo não tão comum no futebol brasileiro: protestar diante dos problemas. Os cruzeirenses optaram por não se concentrar antes de um jogo, enquanto que os atletas das outras três equipes cruzaram os braços e não treinaram por um dia.

A situação mais grave é a do Cruzeiro, que, atolado em dívidas, não conseguiu o acesso e vai ficar mais um ano na segunda divisão. Nos bastidores, os jogadores fizeram um protesto contra os atrasos salariais e a falta de perspectiva do pagamento dos vencimentos pela diretoria do clube e não se concentraram na Toca da Raposa para a partida contra o Oeste, vencida pela equipe do interior paulista por 1 a 0.

No dia seguinte ao compromisso, a diretoria se reuniu com os atletas e respondeu a alguns questionamentos, sem, no entanto, dar, naquele momento, uma previsão do pagamento dos atrasados. O presidente Sérgio Rodrigues reconheceu os erros da direção e afirmou, na ocasião, que o diálogo com os jogadores não estava adequado. Segundo ele, parte dos atrasados foi quitada. O ambiente conturbado levou o técnico Luiz Felipe Scolari a deixar o clube. Felipe Conceição foi contratado para o lugar do pentacampeão e terá, na próxima temporada, a missão de conduzir o time celeste de volta à elite do futebol brasileiro.

"Cada um entendeu o erro que cometeu. Equalizamos as conversas, os jogadores viram os esforços que estão sendo feitos, mostramos o cenário que temos pela frente. Embora difícil (o cenário), todo mundo sabe que é, mas o quanto a gente trabalha para obter recursos", disse, na época, o mandatário. "Faltava talvez a gente ampliar o diálogo dentro deste tipo de situação. A gente colocou bem firme, como vai ser e vai funcionar. Sei onde errei, eles sabem como erraram", acrescentou o dirigente, que também afirmou que "a roupa suja se lava em casa".

Já os atletas de Avaí, Chapecoense e Ponte Preta ficaram sem participar de um treinamento para mostrar aos dirigentes o descontentamento deles com as pendências. Os protestos foram liderados, em todos os casos, pelos mais experientes dos elencos. A postura assertiva reforçou que eles estão mais atentos aos seus direitos.

"Os atletas e a sociedade de um modo geral acordaram para as garantias que as leis preveem, algumas há bom tempo. Os meios de comunicação evoluíram, trouxeram notícias mais fundamentadas e levaram atenção e esclarecimento de temas jamais abordados. O mundo mudou para melhor nesse particular e os atletas passaram a ser mais atentos aos seus direitos, responsabilidades e obrigações contratuais também", avaliou Felipe Augusto Leite, presidente da Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol (Fenapaf), em entrevista ao <b>Estadão</b>.

O mandatário da entidade aponta outras alternativas para os jogadores em caso de novos problemas. "Buscar os sindicatos locais que têm o dever de proteger e evitar individualizar as reclamações e não expor o atleta, denunciar abusos, cobrar posição da entidade representativa de classe e, em caso de omissão, buscar apoio na Fenapaf", disse.

Atualmente na presidência do Sindicato dos Atletas de Futebol do Município de São Paulo (Siafmsp) e também diretor financeiro da Fenapaf, Washington Mascarenhas foi jogador e passou por episódios semelhantes de atraso nos vencimentos. O ex-atacante entende que as manifestações são necessárias, mas faz uma ponderação quanto à conduta dos atletas em razão das dificuldades financeiras dos clubes provocadas pela pandemia de covid-19.

"Sou a favor dos protestos, tudo dentro da legalidade, é claro. Entendo que os clubes tenham dificuldades e que, por isso, os atletas têm que ser maleáveis e não tão radicais, ainda mais no momento em que a gente vive", opina. "Porém, acho que é uma forma bacana de reivindicação, em alguns até uma paralisação. Tudo bem pensado, dentro de uma normalidade, para que o atleta não possa ser sancionado", prossegue Washington, que vestiu a camisa do Palmeiras, entre outros clubes.

"O mundo está mais conectado, as informações chegam com mais clareza e os atletas estão mais ligados. Eles se unem com maior facilidade. Na minha época, havia uma dificuldade de comunicação muito grande. Hoje, eu vejo que as coisas mudaram. Vários temas são abordados com facilidade e os atletas acordaram e viram que precisam buscar seus direitos e serem atendidos", analisa Washington.

Nem mesmo a campeã Chapecoense, apontada como exemplo de gestão antes de ser rebaixada em 2019, conseguiu manter em dia as suas contas. No entanto, após pressão do elenco, a diretoria pagou parte dos salários em atraso no fim de janeiro. Foi acertado o pagamento referente a dezembro (CLT). Ainda restam, porém, algumas pendências, como direitos de imagem.

O Avaí, por sua vez, explicou que "o clube tem ativos para receber, mas o que vem atrapalhando é a remessa destes valores e isso tem sido comunicado a todos os colaboradores, inclusive aos atletas". Também assegurou que "tem agido de forma transparente, informando a todo instante o andamento destes esforços para cumprir os compromissos". A equipe de Florianópolis chegou a brigar pelo acesso, mas terminou em nono lugar.

"MANIFESTAÇÃO LEGÍTIMA" – Presidente da Ponte Preta, Sebastião Arcanjo, o Tiãozinho, tem um histórico de luta trabalhista e sindical. Até por isso, o dirigente, que já foi vereador de Campinas e deputado estadual por São Paulo, não condena a atitude dos jogadores. Ele considera que o protesto é legítimo e assegura que "acordo feito entre as partes está sendo cumprido".

"Como alguém que sempre lutou pelos direitos das pessoas, entendo que este tipo de manifestação é legítima e a postura da Ponte Preta sempre foi a de um diálogo honesto e amplo", disse Tiãozinho em entrevista ao Estadão, antes de apontar a contrapartida nesse caso. "Contudo, entendemos também que os atletas devem dar seu melhor em campo, a contrapartida tem de ser e é sempre exigida. Um médico que faz um dia de paralisação por uma questão trabalhista deve continuar se empenhando ao máximo para salvar a vida do paciente que atende no hospital".

Único presidente negro nas séries A e B, Tiãozinho analisa que o fato de os jogadores tomarem mais partido, não só sobre os seus direitos, mas também em relação a temas inerentes à sociedade, é algo natural hoje e "uma evolução natural e necessária".

"A própria sociedade exige deles posturas e posicionamentos sobre os mais diversos temas, bem além dos direitos trabalhistas: racismo, homofobia, contra o feminicídio, posturas adequadas em relação à pandemia", salientou. "Mas é preciso sempre lembrar que ela vem atrelada a um crescimento de responsabilidade e necessidade de profissionalismo bem maiores também", adicionou.

Segundo o dirigente, "a pandemia e os impactos financeiros gerados por ela causaram uma questão estrutural no futebol neste último ano". Com a crise sanitária no País, vieram dívidas acumuladas. Ele garante que não há mais pendências com os funcionários e que a diretoria está se empenhando para viabilizar recursos para quitar todos os débitos com o elenco. A equipe fechou a Série B em sétimo lugar.

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