Foi, e será talvez, a mais bela sessão da Mostra Panorama, na Berlinale, o Festival Internacional de Cinema de Berlim, deste ano. Marcelo Botta, que assina <i>Betânia</i>, levou uma trupe de artistas que fez uma apresentação de Bumba Meu Boi, após a projeção no domingo, 18. A Sala 1 do Zoo Palast, uma das maiores de Berlim, estava lotada. O público aplaudiu calorosamente.
Houve na sequência o que se chama de <i>Q&A, Question&Answer</i>, Pergunta e Resposta. Botta contou que visitou os Lençóis Maranhenses em 2018 para fazer um documentário. Durante o isolamento da pandemia, pensou muito que havia conhecido pessoas tão interessantes, e uma cultura tão rica, que o doc poderia virar uma ficção. Três anos depois, no final de 2021, estava de volta para selecionar elenco, escolher locações e escrever o roteiro.
Mais do que diretor, seu sonho era ser DJ. É louco por música. Ouvia muito a música local enquanto escrevia. A música terminou organicamente integrada ao roteiro. A história de Betânia, a parteira cujo marido morre logo no começo. Nessa parte do filme, ela não mora em Betânia, a comunidade que lhe deu o nome. As filhas querem que ela vá para lá. Betânia resiste, mas termina indo com o genro, Tonhão, e o neto, Antônio Filho.
Sob certos aspectos, o filme parece um roteiro turístico do Maranhão, e dos Lençóis, mas só na aparência. É o retrato de uma mulher forte, de uma comunidade que resiste. Os Lençóis são formados pelas dunas que, sob a ação do vento, estão sempre mudando o curso do rio. Lagoas secam e o lugar virou depósito de lixo dos oceanos do mundo. Natureza, meio ambiente, religião. Os evangélicos avançam na região, cobrando caro o dízimo de quem não tem. Até o turismo é (auto)criticado – subvertido -, quando o guia, Tonhão, perde-se nas dunas com um casal de turistas franceses. É salvo pelo filho, que mobiliza a comunidade inteira.
Os aplausos finais mostraram que o filme comunica bem. E Botta trabalhou com elenco local, o que garante a autenticidade dos personagens. O longa ainda terá 5 sessões na Berlinale entre os dias 19 e 25. Depois, segue para outros festivais e deve estrear nos cinemas nacionais em outubro, após a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. <a href="https://www.instagram.com/reel/C3eDDQhIqbF/?" target=_blank><u>Veja o trailer aqui.</u></a>
<b>Filmes brasileiros na Berlinale</b>
<i>Betânia</i> é um dos quatro longas brasileiros nessa Berlinale. Nenhum participa da Wettbewerb, a mostra competitiva. <i>Cidade; Campo</i>, de Juliana Rojas, está na mostra Encounters, que integra a seleção oficial. Foi exibido para a imprensa também no domingo, 18, e terá sua estreia mundial nesta segunda-feira, 19, com mais quatro sessões até o encerramento do festival.
São duas histórias de migrações. Fernanda Vianna, excelente atriz do grupo mineiro Galpão, perde tudo no rompimento da represa de Brumadinho. Cansada de esperar pela indenização que não vem, muda-se para a cidade, para a casa de uma parente. Na outra história, Bruna Linzmeyer e Preta Ferreira fazem o caminho e mudam-se para o campo, para a roça que a segunda herdou do pai.
Especialmente a segunda história carrega no estranhamento tão caro ao cinema de Juliana. As cenas de sexo são fortes, mas orgânicas. Tudo vai bem até que elas experimentam a ayahuascar. Bruna confessa depois que teve uma visão, sente que ali estão vivendo o fim do mundo. É difícil dizer que Fernanda se encontrou na cidade, mas Bruna e a companheira estão dispostas a descobrir o que vem após o fim.
O filme tem clima, boas atrizes – ótimas -, mas a articulação das histórias, e das migrações, não convence muito. Também em Encounters há uma coprodução internacional com a parceria brasileira da Cinemascópio, da dupla Émilie Lesclaux/Kleber Mendonça Filho. <i>Dormir de Olhos Abertos/Sleep with Your Eyes Open</i>, de Nele Wohlatz, é uma parceria entre Brasil, Argentina, Taiwan e Alemanha. O filme estreou na Mostra no sábado, 17, com mais três sessões até o dia 25.
Foi rodado parcialmente no Recife e mostra como, num verão, três personagens díspares, que nada parece unir, terminam se relacionando, como ilhas numa correnteza. Infelizmente, todas as sessões do filme estão batendo com as da competição. Tem faltado tempo para conferir as apregoadas qualidades de <i>Dormir de Olhos Abertos</i>.
Jornalistas estrangeiros têm avalizado o longa. Numa reportagem de página inteira sobre o Brasil em Berlim – nas revistas que circulam no festival – a surpresa foi ver <i>Shikun</i>, de Amos Gitai, listado com os demais longas nacionais. Como? Embora o crédito inicial de produção seja de Jeremy Thomas apresenta, o filme tem produtores brasileiros – Marcelo Brennand, João Queiroz, Luiz Simões Lopes Neto.
No final, há um agradecimento especial a Eugene Ionesco. <i>Shikun</i> baseia-se livremente em <i>O Rinoceronte</i> para abordar a tentação do totalitarismo que está embrutecendo as pessoas em todo o mundo. Estreou no festival também no domingo, 18, com outras quatro sessões até o dia 20.
Gitai fez o que até agora talvez seja o mais ousado, em termos de linguagem e política, filme dessa Berlinale. Infelizmente, não concorre ao Urso de Ouro, porque <i>Shikun</i> passa na seção Berlinale Special. Reafirmando sua mise-en-scène por meio de elaborados planos-sequências, o grande autor discute como funciona o capitalismo selvagem em Israel – por meio da especulação imobiliária -, afronta questões religiosas e, mesmo sem citar diretamente Benjamin Netanyahu, questiona a responsabilidade do fundamentalismo que confina 2 milhões de palestinos nas hoje duramente atingidas regiões de Gaza e da Cisjordânia. Irène Jacob, atriz de Krszystof Kieslowski – em <i>A Dupla Vida de Veronique</i> e <i>A Fraternidade É Vermelha</i> – atravessa o filme alertando para a invasão dos rinocerontes. Passaram-se 30 anos, e ela segue deslumbrante.