"Infinito vão" é uma expressão que, à primeira vista, pode sugerir um obstáculo intransponível. Mas não para os arquitetos Fernando Serapião e Guilherme Wisnick. Para eles, pode bem representar uma travessia ampla e rica de possibilidades. E que pode ficar ainda mel hor pontuada por boa música. Serapião assina com Wisnick a curadoria da exposição Infinito Vão: 90 Anos de Arquitetura Brasileira – mais especificamente, no período compreendido entre os anos 1920 e os nossos dias. "A mostra convida o visitante a refletir sobre a liberdade de criação de nossos arquitetos quando confrontados com as perspectivas artístico-culturais da modernidade e da contemporaneidade", diz Serapião.
Em cartaz entre 2018 e 2019, na Casa da Arquitectura – centro expositivo situado na região metropolitana do Porto, em Portugal -, é a primeira vez que Infinito Vão é apresentada no Brasil. Chega hoje, e se estende até junho de 2021, também em uma locação emblemática: o icônico prédio do Sesc 24 de Maio, obra que também integra o roteiro da exposição, projetado por Paulo Mendes Rocha e pelo escritório MMBB Arquitetos, em pleno centro histórico de São Paulo.
Realizando um eficiente recorte da produção arquitetônica nacional – por meio de fotos, projetos, maquetes e documentos -, a mostra revisita o trabalho de quase uma centena de nossos mais representativos arquitetos. Entre eles, Mendes da Rocha, Lina Bo Bardi, Lucio Costa, Vila Nova Artigas e Oscar Niemeyer, que comparece com suas principais obras. "Sabemos que uma exposição de arquitetura corre o risco de ser sentida como muito específica e restrita a experts", afirma Wisnick sobre a decisão da dupla de curadores de fazer com que cada bloco da exposição fosse introduzido por trechos de uma canção de forma a ampliar seu entendimento.
Assim, além de tomar de empréstimo um trecho de Drão, música de 1982, de Gilberto Gil – "O verdadeiro amor é vão, estende-se infinito, imenso monolito, nossa arquitetura" -, para nomear a mostra, foi também em nosso cancioneiro popular que a curadoria foi buscar subsídios para interligar a arquitetura produzida no Brasil a seu contexto histórico-cultural.
"Inteiro e Não pela Metade", fragmento extraído da canção Comida, dos Titãs, por exemplo, exprimindo as aspirações de um país que retornava à democracia, desejando implementar seus projetos sociais, abre o bloco que compreende obras realizadas entre 1985 e 2001, como a Escola Guignard, de Gustavo Penna, em Belo Horizonte, Minas Gerais.
Da mesma forma que "Sentimento na Sola do Pé", trecho de uma canção dos Racionais MCs, introduz o segmento compreendido entre 2001 e 2018, traçando um paralelo entre a arquitetura e a realidade violenta das metrópoles brasileiras do novo milênio. Conforme explicam os arquitetos em entrevista ao <b>Estadão</b>, na qual comentam suas trajetórias profissionais e descrevem o processo de construção conjunta da mostra.
<b>Como surgiu a ideia de realizar a exposição?</b>
Fernando Serapião: Em 2016, quando recebemos um convite do diretor executivo da Casa da Arquitectura, Nuno Sampaio, para que fizéssemos a curadoria do acervo de uma coleção de fotografias de arquitetura brasileira que teria como desdobramento uma mostra. Eu já conhecia o Guilherme de longa data: ambos somos paulistanos, da mesma geração, os dois arquitetos, trabalhamos com crítica de arquitetura, mas seguimos caminhos profissionais distintos. Ele, na vida acadêmica. Eu, no mercado editorial. Antes, ele já havia me convidado para fazer a curadoria de uma sala na Bienal de Arquitetura na qual ele foi curador e eu já o havia convidado para escrever textos para minhas publicações. Mas nunca havíamos trabalhado com tanta intensidade e, claro, nestas circunstâncias, sempre existe uma certa dose de incerteza.
<b>Houve uma divisão de tarefas?</b>
FS: Inicialmente, nos concentramos na coleção. Encerrada a seleção do acervo, nós dois começamos a tratar da exposição, que praticamente nasceu pronta. Tudo parecia já estar amadurecido em nossas cabeças: um dava uma ideia e o outro complementava. O fato de nos sentirmos uma dupla ajudou na divisão do trabalho. Seja em função de um maior entrosamento de um de nós com algum dos tópicos que relacionamos, seja pela disponibilidade de tempo. Mas, de qualquer forma, todas as decisões foram partilhadas.
<b>Quais os desafios envolvidos em realizar um recorte sobre um período tão vasto e rico da produção arquitetônica nacional?</b>
FS: Creio que o maior desafio foi estabelecer um sentido de unidade para uma produção tão diversa e plural. Sem pretender reduzir a diversidade da nossa arquitetura, penso que encontramos na técnica o fio condutor para estabelecer a ideia central da mostra, a partir de uma definição que fomos buscar em um autor português, Alexandre Alves Costa: "A arquitetura brasileira é uma linha horizontal levantada do chão, afirmação simples e delicada de esperança no futuro, força irresistível de dissolução do passado pobre e oprimido, fundação da pátria, abstrata e metafísica". Sem dúvida que esse desejo percebido por Alves Costa perpassa grande parte dos trabalhos apresentados. Mesmo aquela presente em projetos menores, que lançam mão do concreto, do aço, da madeira ou do tijolo para se manifestar. Mas sempre tendo a técnica como tônica.
<b>Qual foi o critério preponderante para a escolha dos projetos?</b>
Guilherme Wisnik: Seguimos um critério importante que foi não ter mais de uma obra por arquiteto ou arquiteta, buscando evitar concentrações excessivas, e assim alcançar maior diversidade e representatividade. É claro que alguns arquitetos (as) muito significativos acabaram tendo duas obras e Niemeyer, naturalmente, um pouco mais. Como a exposição é cronológica, foi necessário escolher um período para demarcar a produção de cada profissional, mesmo que ele tenha produzido trabalhos significativos em outros momentos. Propostas urbanas, de espaços públicos, e paisagísticos, também foram abordadas, mas não de forma extensiva, assim como a questão do desenho de mobiliário, presente também na obra de muitos arquitetos. Consideramos que todos esses temas justificariam outras exposições, porém com focos específicos. Por fim, nossa estratégia foi lançar os temas fundamentais relacionados aos espaços públicos, por meio de sete vídeos que integram a exposição, abrindo cada um dos nossos núcleos cronológicos.
<b>Como surgiu a ideia de associar trechos de canções populares a cada um dos blocos que compõem a mostra?</b>
GW: Bem, antes de mais nada, acho que o gosto pela música é um traço comum a nós dois, eu e Fernando, e também a Nuno (diretor executivo da Casa da Arquitectura, em Portugal), que nos convidou para conceber a exposição. Mas devo dizer que neste caso a música teve um papel fundamental. Sabíamos que uma exposição de arquitetura sempre corre o risco de ser sentida como muito árida, como algo reservado a especialistas. E que, ao mesmo tempo, canções que são muito conhecidas, que trazem um dado afetivo sobre cada momento histórico, poderiam ajudar as pessoas a entender as obras de arquitetura como produtos culturais capazes de dialogar com outras formas de expressão, como a música, o cinema, a televisão. Daí a ideia de selecionar trechos de canções para introduzir os núcleos temáticos da exposição. A mostra cobre 90 anos de história, iniciando em 1928, com a Casa da Rua Itápolis, de Gregori Warchavchik, marco da nossa arquitetura modernista, e prossegue até 2018, ano em que a exposição foi inaugurada, em Portugal. Esse período, por sua vez, está dividido em seis núcleos, cujas datas de início e término correspondem a fatos marcantes da história da arquitetura e da política brasileiras. Cada um deles tem uma canção que lhe empresta o nome, composta e gravada em cada época. E posso dizer que, de marchinhas a rocknroll, temos um pouco de tudo.
SERVIÇO
Infinito Vão – Até 27 de junho de 2021, de terça a sexta, das 15h às 21h, e aos sábados, das 10h às 14h, mediante agendamento prévio pelo site sescsp.org.br/24demaio.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>