Assim que o Brexit entrou em vigor, em 31 de janeiro de 2020, o fornecedor de uma loja de produtos italianos em Londres aumentou os preços. O molho de tomate, por exemplo, passou a ser vendido para o dono do negócio pelo dobro do valor. Como 90% dos alimentos são importados da Itália – não só os salames, os queijos e o macarrão, mas também a farinha e o fermento para a fabricação dos pães -, parte do custo foi repassado aos clientes.
"Precisamos pagar o aluguel, os funcionários, as contas. O impacto do Brexit foi maior para lojas pequenas, de bairro. Os grandes supermercados têm mais poder de compra", disse o gerente Omar De Caro ao <b>Estadão</b>.
O italiano, que vive há 11 anos no Reino Unido, tem acompanhado de perto as transformações provocadas por esse complicado divórcio. Desde o plebiscito de junho de 2016 – quando 52% dos britânicos votaram a favor da saída da União Europeia – o Brexit dividiu o país e custou o cargo de dois primeiros-ministros: David Cameron, que convocou a votação popular, e Theresa May. O sucessor dela, Boris Johnson, assumiu prometendo resolver a questão a qualquer custo.
Nesta terça-feira, chegou ao fim o período de transição de onze meses que serviria para definir a futura relação entre as duas partes e a partir de agora começa uma nova era para os britânicos.
Com o Reino Unido oficialmente fora do bloco, ainda há muitas perguntas sem respostas, mas algo é certo: a rotina será bem diferente. Ser integrante da União Europeia significa fazer parte de um clube seleto. Com as chamadas "quatro liberdades" – livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capital – é possível viver e trabalhar, abrir uma conta corrente, ter roaming gratuito de celular em qualquer uma das nações do bloco, entre outros benefícios.
Agora, britânicos só podem passar 90 dias na União Europeia em um período de seis meses sem precisar de visto, e vice-versa. Quando viajarem, estarão sujeitos a filas na imigração. Quem conseguir visto de trabalho pode ter de validar o diploma no país da UE onde for morar, o que antes acontecia automaticamente. Até viajar com o animal de estimação está mais complicado. O dono precisa tirar um certificado que pode levar um mês para ficar pronto.
Os europeus que se mudaram para o Reino Unido até 31 de dezembro de 2020 terão seus direitos preservados. Mas alguns, especialmente os idosos ou os que não falam inglês, têm dificuldades em preencher os formulários exigidos pelo governo britânico.
Em meio às incertezas, um alívio veio na véspera de Natal, quando Reino Unido e União Europeia anunciaram um acordo de comércio com tarifa zero para produtos que se enquadrem nas regras de origem.
Saem cotas e tarifas, entram o controle alfandegário e a burocracia. Boa parte da negociação do setor de serviços, responsável por 80% da economia britânica, ficou para 2021. O premiê sustenta que a independência em relação à União Europeia traz vantagens, como a rapidez para aprovar e aplicar uma vacina contra a covid-19.
Enquanto Johnson anunciava que, com o acordo, o país "retomou o controle de suas leis e do seu destino", longas filas de caminhões se formavam depois que o governo da França proibiu a entrada de cargas procedentes do Reino Unido por causa da mutação do coronavírus descoberta na Inglaterra.
Shane Brennan, diretora-executiva da Cold Chain Federation, grupo britânico que representa firmas de logística, prevê mais problemas. "Com as novas regras do Brexit anunciadas tão em cima da hora, a cadeia de produção vai ficar mais lenta, complexa e cara, pelo menos em um primeiro momento", sustenta. O Reino Unido importa quase 30% dos alimentos da União Europeia.
<b>Brasileiro</b>
Alex Odorico, caminhoneiro brasileiro de uma empresa espanhola que transporta frutas e verduras entre países da Europa, viu longas filas na fronteira de perto, quando entrou no Reino Unido no dia 23 de dezembro. "Foi uma agonia ver tantos caminhões parados. Eu nunca imaginaria que um fechamento como esse (em razão da nova cepa da covid) iria afetar tanta gente. Não só nós trabalhadores, mas também fornecedores, mercados, consumidores. Muitos caminhoneiros passaram o Natal na estrada", afirma o brasileiro.
A loja de De Caro também sofreu com a paralisação. Algumas encomendas não chegaram. Mesmo assim, ele pretende continuar com o fornecedor para manter a autenticidade do negócio. "Não vamos trocar por produtos britânicos. Quando o cliente entra na loja, queremos que ele se sinta na Itália e experimente sabores verdadeiramente italianos."
Se o Brexit trouxe insegurança para muitos negócios, a pandemia deixou em situação precária até um dos lugares mais frequentados e amados pelos britânicos. Por causa das restrições, no mês passado os pubs serviram 270 milhões de pints (copos de 473 ml) a menos do que em dezembro de 2019, uma queda de receita de £1 bilhão (R$ 7 bilhões) para o setor, segundo a Associação Britânica de Cerveja e Pubs.
"A covid foi a cereja do bolo", lamenta De Caro. Mas o gerente, que é mágico nas horas vagas, prefere ver o futuro com otimismo e acredita que, mesmo em tempos difíceis, a clientela não vai desaparecer.
"Os clientes confiam em nós, são amigos. Tratamos a todos como nossa família. Os mais fiéis entendem a situação", diz. "Se você tem sonhos e trabalha duro nesse país, consegue realizá-los. Na Itália, a profissão de mágico não é reconhecida. Aqui é, e eu consigo ganhar dinheiro com isso. Tento viver um dia de cada vez."
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>