Há 15 anos, no dia 11 de setembro, os Estados Unidos passavam por uma série de atentados que marcariam a sua história e a do mundo. A partir dessa data, ações políticas foram tomadas, posições foram escolhidas e manifestações culturais, inspiradas nesse episódio e em seus desdobramentos, surgiram. A revista em quadrinhos não foi exceção.
Com o objetivo de identificar o discurso da editora Marvel Comics, Victor Callari, pesquisador e mestre em História pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp – Campus Guarulhos), realizou uma análise de mais de 100 histórias, publicadas entre os anos de 2005 e 2007, relacionadas à coletânea “Guerra Civil”. “Acreditávamos que, além de construir uma representação dos eventos políticos dos EUA, essa série serviu como uma tentativa de intervenção junto à opinião pública por parte da editora”.
Planejada para ser um crossover – reunião dos principais super-heróis e vilões e repercussão dos acontecimentos nas histórias de outros títulos da editora –, “Guerra Civil” foi lançada com sete edições. Onze números de “Guerra Civil: Frontline”, além de outras publicações especiais conectadas à trama, também foram incorporados na análise.
A narrativa gira em torno de uma proposta de regulamentação governamental. Intitulada Lei de Registro, sua aparição se deu por conta de vários incidentes entre heróis e vilões. Seu objetivo, portanto, é regularizar a atuação dos próprios super-heróis, criando um registro da identidade secreta junto ao governo, e treiná-los para que suas ações não resultem em mais prejuízos à sociedade. A medida gera dois blocos e um conflito: os que aceitam, liderados pelo Homem de Ferro e o Sr. Fantástico, e os que rebelam contra a lei, liderados pelo Capitão América. “Guerra Civil: Frontline”, por sua vez, foca no papel da imprensa, representada por um casal de repórteres que expõe as perspectivas da população.
A imagem acima merece destaque, já que representa o ponto que norteia a série. O vilão Nitro, em um combate, usa o seu poder para escapar e causa uma grande explosão, afetando uma área urbanizada e matando muitos cidadãos. Como consequência, os heróis estão à procura de sobreviventes. “A cena evoca a presença dos atentados terroristas ao World Trade Center, as vítimas inocentes e a incapacidade da defesa do governo dos Estados Unidos, representada pela bandeira destruída e abaixo de um dos maiores símbolos da cultura moderna estadunidense, um Capitão América de cabeça baixa”, comenta Callari.
Os meios de comunicação foram fortemente representados na trama, com o objetivo de, não só contribuir para a compreensão dos acontecimentos, como trazer referência à atuação da própria imprensa estadunidense após os atentados. Há a contraposição, por exemplo, entre o jornalismo informativo e o jornalismo investigativo. O primeiro diz respeito a maioria dos veículos de comunicação, que apoiam a Lei de Registro, mas se isentam de uma construção crítica sobre o assunto. O segundo, no entanto, representado por poucos meios, entre eles o casal de repórteres de “Guerra Civil: Frontline”, convoca a população a pensar e questionar a lei. “O leitor passa a ser convidado a refletir sobre a manutenção dos órgãos de imprensa, a filiação desses órgãos com o poder constituído, sua dependência do Estado ou de anunciantes”.
Entretanto, o embate entre os personagens que personificam cada um dos lados da história deixa claro o posicionamento da editora Marvel Comics. “Diferentemente da representação altiva e convicta do Capitão América, o Homem de Ferro é retratado de maneira titubeante, receoso de que o caminho adotado não seria a escolha correta”, analisa Callari.
Várias cenas apresentam claramente essa contradição. Na última edição de “Frontline”, por exemplo, após ser preso, o Capitão América é questionado sobre sua decisão de combater a Lei de Registro e responde: “Eu fiz um juramento de defender a América de forças externas e internas, se isso significa ficar contra o meu próprio governo, rejeitando uma lei falsa que foi aprovada por meus próprios superiores, então, suponho que é isso o que importa”. Já na segunda edição de “Guerra Civil”, o Homem de Ferro se questiona: “Oh, Deus, por favor, que a gente esteja fazendo a coisa certa”. Além disso, o grupo dos apoiadores da Lei criam a Zona Negativa, complexo de alta tecnologia reservado para a prisão de presos políticos e relação direta ao Guantamano Bay Detention Camp, criado pelos Estados Unidos em 2002 para abrigar suspeitos ligados ao terrorismo.
Desta forma, o pesquisador conclui que “o entendimento é que a editora se posicionou de maneira contrária às medidas de segurança que estavam sendo adotadas pelo governo, naquilo que ficou conhecido como Ato Patriótico, mantendo uma leitura progressista da sociedade, entendendo essas medidas como uma violação das liberdades individuais garantidas pela Constituição”.
Callari visualizou ainda representações relacionadas aos atentados em outras publicações, “reproduzindo o sentimento de incapacidade de ação e incredulidade diante dos acontecimentos, passando pelo clima de insegurança, medo e vingança, até a crítica às posturas adotadas pelo governo de George W. Bush”. A edição especial “The Amazing Spider Man” (nº 36) – que traz o nome da publicação em um fundo preto, simbolizando o luto da nação – até a coletânea “The Call of Duty: The Brotherhood” – com protagonistas bombeiros, paramédicos e policiais, representando-os como super-heróis da vida real – são alguns exemplos citados.
Vale ressaltar que um dos pontos importantes e inovadores que esse estudo traz é o seu objeto: os quadrinhos. Seja na televisão ou na sala de cinema, seja nas prateleiras de uma livraria ou em uma banca de jornal, as HQs estão ganhando o seu lugar, até nas universidades brasileiras. Entretanto, há ainda dificuldades no desenvolvimento de trabalhos acadêmicos nessa área. “Mesmo que o interesse pelos quadrinhos esteja crescendo, existem poucos especialistas, poucos espaços para troca de experiência e a bibliografia continua escassa quando comparada com outras áreas”, finaliza o pesquisador.