Conheci dona Meire em 2015, depois de tantas vezes espiar seu sorriso atrás daquele tradicional balcão de madeira, na Rua Capitão Teófilo, 23, centro de Guarulhos. Ela trabalha ali rodeada por caixas de sapatos há mais de 40 anos. Não é raro ela ouvir: “Por favor, chame o sapateiro”.
Esta é Meire Cunha, a sapateira de 65 anos. “Esse preconceito é muito comum. Já me acostumei e pude provar com meu trabalho que sou tão competente como qualquer outro competente sapateiro”, disse sorrindo à repórter, entre um cliente e outro, em uma quinta-feira puxada de trabalho.
“Com a crise, as pessoas passaram a comprar menos calçados e consertar mais, aí fica um desafio, porque a nossa mão de obra continua a mesma”, explica Meire. Sua história está retratada nas paredes de seu comércio, repletos de quadros com reportagens já feitas sobre sua trajetória e objetos que revelam partes de sua vida, como o berrante que o marido já falecido, Osvaldo Cunha, tocava.
Meire da Cunha nasceu no Tatuapé, bairro da zona leste de São Paulo, e chegou a Guarulhos em 1954, quatro anos depois de inauguradas as rodovias Presidente Dutra e Fernão Dias. Eram tempos de aproximação das duas grandes cidades, um momento histórico de aceleração industrial no País. A conexão com o estado do Rio de Janeiro também crescia pelas rodovias.
Era um momento importante para Guarulhos e também de aceleração na vida de Meire, que desde os nove anos trabalhava com calçados. Tudo começou de um modo muito peculiar, com um castigo da mãe. “Eu arrumei uma confusão na rua e minha mãe disse assim: ‘ao invés de você ficar fazendo confusão à tarde, você vai ajudar aquela senhora gratuitamente’”, revela a sapateira.
Assim, a jovem começou a trabalhar com roupas e calçados, auxiliando a tal senhora. Com o tempo, a paixão pelo ofício se estendeu ao colega de trabalho: Osvaldo. O rapaz tinha 18 anos e trabalhava em Guarulhos fabricando e consertando sapatos. Eles se conheceram no setor de pespontaria (local em que os sapatos são costurados, incluindo os acabamentos) e acabaram costurando suas histórias.
O namoro começou. Ela tinha 12 anos e, depois de cinco, se casaram com a autorização dos pais dela. “Meu pai teve de ir ao cartório”, conta Meire, com sorriso fácil. “Vimos que juntos éramos melhores e mais fortes”. Os jovens juntaram as escovas, os sapatos e os passos. Da união nasceu Edson, filho único que o casal perdeu em 1995.
Essa não foi a única perda de Meire. Osvaldo morreu em 2010, vítima de um câncer. Seu corpo se foi, mas seu conhecimento e seu amor pela família e pela sapataria, ao que parece, permanecem bem vivos. “Ele deixou o preposto dele”, disse a sapateira apontando para Alex Oliveira, de 31 anos, um rapaz tímido que divide balcão, paixão e máquinas com Meire há 16 anos.
“O Alex trabalhou com ele (Osvaldo) por muitos anos. Não poderia amá-lo mais do que amo hoje. Ele conviveu desde criança e pegou todas as manhas… Se fosse meu filho talvez não tivesse absorvido tanto o nosso conhecimento neste ramo como ele absorveu”, conta orgulhosa.
Alex não é filho biológico do casal, mas herdará a sapataria. Reencontrei-o com o mesmo sorriso e simpatia. É casado com Ana Paula e tem uma filhinha, a Vitória. “Cheguei aqui e fui tratado com muito carinho, comecei a gostar do trabalho. Primeiro eu comecei varrendo o chão e fui me aperfeiçoando”, conta Alex, que antes nunca pensara em cuidar de seus sapatos, quanto mais consertar os de terceiros.
“Dona Meire e senhor Cunha são como meus pais. Ele era como um pai para mim. Eles me deram aquilo que meu pai e minha mãe não tiveram comigo. Aqui me sinto em família, é um amor incondicional. Não é só trabalho”, desabafa, nitidamente emocionado.
Alex aprendeu a ser sapateiro em Guarulhos trabalhando no dia a dia. Não teve um curso específico para tal, mas a professora ensinou o oficio. “É preciso dedicação, porque é um conserto, então, a cada dia surge uma maneira diferente de consertar, surgem novos tipos de sapatos e materiais, por isso é necessário, além da habilidade, se atualizar sempre”, conta dona Meire.
Cultura do descartável – Meire não conhece Francisco, o papa, mas ambos compartilham ideias semelhantes sobre a cultura do descartável. Na ambição de possuírem bens, independentemente da qualidade e do impacto que os objetos causam ao meio ambiente, as pessoas estão cada vez mais comprando, consumindo desenfreadamente, acumulando, e isso acontece também com os sapatos.
“Um sapato feito há 30, 40 anos durava de 15 a 20 anos. Ele passava da irmã mais velha para a mais nova. Era a cultura do cuidado, do preservar, hoje não, porque a indústria trabalha visando a vender sempre mais. Hoje eu conserto mais sapatos novos do que velhos”, conta Meire.
“Sou sapateira e estudei para isso também, e não é que não tive opções não”, revela a mulher, que é formada em corte e costura, em design de sapatos e direito. “Tudo o que fiz foi para aprimorar o meu conhecimento na sapataria. Faço ainda e faria, porque eu amo isso.”
Ela não para, participa de cursos na indústria calçadista no Amazonas, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, de feiras e exposições, conversa com fabricantes para entender e conhecer o material, a tinta, a composição dos sapatos que vão surgindo. “Há alguns anos, por exemplo, a sola era de borracha ou de plástico, hoje não, existem solas de plástico e borracha, então você tem que conhecer para saber que tipo de material utilizar para o conserto. É preciso acompanhar o mercado”, afirma.
Meire da Cunha já formou mais de 50 profissionais e, segundo ela, dentre estes, nenhuma mulher. “Apenas 10% levaram amor na arte de consertar sapatos”. O amor que move a sapataria parece até ser a continuidade do amor que Meire nutriu por seu marido, o senhor Cunha.
“Ele amava isto aqui, então é uma forma de eu perpetuar a minha ligação com ele. Para mim, ele continua aqui”, conta a mulher, atrás de seu balcão ali na Rua Capitão Teófilo, 23, no coração de Guarulhos a costurar sapatos e histórias.