Mundo das Palavras

A artista de face escondida

Contrariar a norma estética adotada num momento da História da Arte sempre levou artistas rebeldes à maldição social. Porém, sem eles, o universo da produção artística nunca se livraria daquilo que já fora criado. 
 
Hoje há, no Brasil, uma artista em tal situação existencial.  Seu trabalho – desenvolvido nos últimos 14 anos – permanece interditado nas redes de rádio e televisão. Um público jovem o conhece. Porque o buscou, através do teatro, cansado da mesmice produzida pela indústria fonográfica. Raros profissionais do jornalismo impresso  deram atenção a ela. E eles se entusiasmaram.  
 
Pedro Alexandre Sanches, da Revista Fórum, escreveu sobre o álbum dela, de 2013:  ‘é a cristalização dos ventos de liberdade” que esta artista “há tempos vem soprando sobre nós”. No ano passado, Sílvio Essinger, de O Globo, anunciou: nas novas gravações dela há “o triunfo da vitalidade e da coragem”.  Também Bernardo Mello Franco, da Folha de São Paulo, se comoveu com este trabalho. Escreveu: ela “protagoniza um momento raro” da Arte. 
 
As opiniões são poucas. E não amenizam a maldição. Quem sabe, nela, haja mais do que a ação do conservadorismo estético brasileiro. Ela é negra e idosa. Alvo fácil de preconceitos. Talvez ainda subsistam ranços da moralidade estreita que, no passado distante,  colocou-a em risco de sofrer agressões físicas. Foi quando ela manteve prolongada ligação com um homem casado, pai de várias filhas, grande celebridade nacional. Há ainda conflitos políticos, no caso dela. Hoje, por se colocar na defesa da presidenta Dilma. Antes, por ter se envolvido com a criação musical que a Ditadura Militar sufocou, aquela ligada ao presidente deposto João Goulart e ao compositor Geraldo Vandré. Sua residência no Rio de Janeiro foi metralhada. Ela se viu forçada a sair do País. Depois, soube que tinha perdido o imóvel, por desapropriação.  
 
O certo é que circunstâncias, eventualmente, agravantes da maldição  impediram os brasileiros de se orgulharem dela, devido à consideração que sempre lhe dispensaram no Exterior. Ninguém sabe, mas Louis Armstrong a chamou de “My daughter”, porque ela, sem conhecer as gravações dele, introduziu no canto do Brasil o drive vocal (timbre rasgado).  Ella Fitzgerald a escolheu para ocupar seu lugar no espetáculo “Ella canta Jobim”, quando, numa temporada européia, teve operar a vista. Frank Sinatra baseou sua interpretação de “Dindi”, de Tom Jobim, na gravação dela. E, em 2.000, a BBC de Londres deu a ela o título de “Cantora do Milênio”.  
 
Nada, porém, impede Elza Soares de continuar cantando e receber o amor de jovens. Nem os oito pinos que carrega na coluna vertebral. E não a deixam ficar de pé.
 
(Na ilustração, Elza numa cena do filme “My name is now” sobre sua vida)    
 
 

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