Coluna semanal do jornalista, doutor em Comunicação Social e professor Oswaldo Coimbra
Quando havia autores que ensinam os jovens a pensar, às vezes, encontrávamos livros que sustentavam a existência de uma distinção entre dois tipos de materialismo, o filosófico e o moral. O filosófico se esgotava, segundo aqueles autores, na negação de que tivesse existido um espírito antes do surgimento da matéria que compõe o mundo em torno de nós e, afinal, compõe a nós próprios, humanos, posto que também somos feitos de matéria. Já o moral se caracterizava, diziam os mesmos autores, por uma visão rasteira da vida, desprovida de qualquer altruísmo ou idealismo, cuja meta era simplesmente alcançar os prazeres mais vulgares proporcionados pelo acúmulo de riqueza. Para marcar bem a diferença entre estes dois tipos de materialismo, os velhos livros diziam que era possível imaginar uma pessoa materialista, do ponto de vista filosófico, e, ao mesmo tempo, antimaterialista, do ângulo moral.
Hoje, esta lição antiga encontra uma ilustração surpreendente na figura de um alto mandatário da América do Sul, José Alberto Mujica, presidente do Uruguai. Originário de uma organização guerrilheira, ateia e comunista, na qual militou em sua juventude, Mujica, há três anos, já estava no comando do país vizinho, quando ocupou a tribuna da Organização das Nações Unidas. No local, ele convocou os representantes de dezenas de países reunidos naquela sessão da ONU para o que chamou de “combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção”. Estas “pragas contemporâneas”, ele disse foram “procriadas’ por um “anti-valor”, o qual descreveu assim: “esse que sustenta que somos felizes se enriquecemos, seja como seja”. Mujica acrescentou: “Sacrificamos os velhos deuses imateriais. Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade”.
Na verdade, é muita antiga na História do Pensamento Humano, a postura de quem valoriza a vida, por enxergar nela um valor em si, numa negação do materialismo moral, sem, adesão automática ao materialismo filosófico. Portanto, sem expectativa de recompensa numa outra existência posterior àquela que já temos, enquanto vivemos neste planeta. Há milênio, filosofias orientais defendem esta postura.
Mesmo entre nós brasileiros, felizmente, encontramos, hoje, quem adote este antigo ensinamento, embora muitas vezes, com pessimismo exagerado, julguemos que o tecido social do nosso país esteja completamente apodrecido do prisma ético pelos maus exemplos dos nossos governantes.
Uma prova disto acaba de dar, em São Paulo, o advogado Marcos Santos Conceição. Ele conseguiu a instauração de dois inquéritos na Justiça contra aquele psicopata transformado em carrasco de uma moça, mãe de três crianças, desde setembro do ano passado. A perseguição da moça ocupou três vezes o espaço desta coluna.
Com suas providências, doutor Marcos conseguiu na Justiça conter a perversidade do psicopata, do mesmo modo como se consegue conter a agressividade de um cão perigoso através do uso de focinheira. Ele ainda grunhe, rosna, mas não pode mais avançar sobre sua vítima.
Agora, no estreito limite da relação com sua cliente, o advogado fez mais, dando razão a Mujica no trecho de seu pronunciamento na ONU em que disse: “Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida”. Doutor Marcos renunciou a quase metade de sua justa remuneração para deixar a moça com mais recursos na reorganização de sua vida.
Com estes gestos, o advogado talvez não se defina com relação ao materialista filosófico. Mas materialista do ponto de vista ético certamente ele não é. Para sorte de sua cliente. E de todos nós que, como Mujica, sonhamos com uma sociedade decente e fraterna.