Somente há poucos dias, aos 73 anos de idade, Gal Costa revelou que foi esbofeteada numa rua do Rio de Janeiro, no período de Ditadura Militar. Estava dirigindo seu carro. Sem querer, deixou que a dianteira batesse levemente na traseira de outro veículo, enfurecendo seu motorista. Ele a seguiu até uma loja, onde Gal parou. Esperou que ela retornasse à porta do seu carro, para interpelá-la rispidamente. Gal pediu desculpas. O homem não só não as aceitou. Como deu-lhe um tapa no rosto. E deixou uma ordem para ela seguir.
Aquela agressão poderia ter ofendido muitos brasileiros. Pois, embora não tivesse passado da faixa dos vinte anos de idade, Gal havia ajudado Caetano Veloso, jovem como ela, a sair do anonimato em que vivera em Santo Amaro da Purificação. Juntos, eles gravaram delicados poemas de Caetano no primeiro long play dele – “Domingo”. Como “Avarandado” e “Coração vagabundo”.
Gal atuara destacadamente no grupo de artistas de vanguarda responsável pela renovação da música popular do País. Ela esteve na foto de capa do disco-manifesto “Tropicália”, junto com líderes do movimento Tropicalista. De alguns dos quais – Caetano, Torquato Neto e Tomzé – gravou no disco nada menos que três canções. Inclusive “Baby”, tocada em todo o Brasil.
No festival de música de maior repercussão na época, entre eventos semelhantes – o da TV Record -, Gal se impôs como grande estrela, ao apresentar a surpreendente e criativa “Baby”, canção composta por Caetano e Gilberto Gil. Depois, permaneceu muitas semanas no topo das listas de músicas de maior sucesso, com sua gravação de “Que pena”, de Jorge Ben.
Quando a repressão política atingiu o Tropicalismo, ela tinha apenas 23 anos de idade. Caetano e Gil foram presos e exilados em Londres. Gal transformou sua tristeza numa explosão criativa condensada no disco “Gal”. Em que está “Meu nome é Gal”, composta em homenagem a ela, por Roberto Carlos.
Gal havia assim encantado muitas vezes nossa gente. Como, ainda, quando gravou "Vapor barato", de Jards Macalé e Waly Salomão; "Índia", de J. A. Flores e M. O. Guerreiro; "Oração de Mãe Menininha", de Dorival Caymmi (em dueto com Maria Bethânia); e, "Modinha para Gabriela, de Dorival Caymmi.
Apesar disto, a agressão que sofreu sequer chegou ao conhecimento da opinião pública. Pois, a fase era de censura da imprensa pela Polícia Federal.
Hoje, finalmente, Gal passou a falar da agressão. Não é descabido supor que, um dia, se possa conhecer a identidade do agressor. Afinal, a passagem do tempo já foi capaz até de virar contra ele aquela ordem, dada há meio século à Gal: “Coloque-se no seu lugar de mulher! ”, disse ele, cego pelo preconceito. O lugar da Gal – ele não quis ver – já era o de uma pessoa respeitada e querida. Enquanto o dele, ainda não deixou de ser o do anônimo desprezível.
(Ilustração: Gal na época em que sofreu a agressão)