Variedades

A caixa de maravilhas de Todd Haynes

Talvez não seja muito fácil traduzir Wonderstruck – caminhão de maravilhas, maravilhamento, maravilhado(a). Qualquer que seja a tradução adotada, vai diferir radicalmente de Sem Fôlego, que é como se chama no Brasil o longa de Todd Haynes adaptado do livro de Brian Selznick. O autor é o mesmo que inspirou A Invenção de Hugo Cabret, de Martin Scorsese, que tanto sucesso fez – exagerado, até – de público e crítica. Em contrapartida, Sem Fôlego está sendo visto como uma obra menor do autor de Longe do Paraíso, Não Estou Lá e Carol.

Está na moda criticar os filmes por excesso de beleza. Me Chame pelo Seu Nome, do italiano Luca Guadagnino, está sendo desqualificado sob esse argumento esdrúxulo. Sem Fôlego também é bonito (demais?), realizado com aquele olho para o cuidado de época tão característico de Haynes. Longe do Paraíso já era uma revisão do melodrama sirkiano e, agora, aprofundando a ligação, Haynes pega carona num clássico de Douglas Sirk para elaborar (no plural) suas imitações da vida, como bem assinalou a crítica do The New York Times.

Duas histórias – dois espaços, dois tempos. A menina em 1927 e o garoto em 1977, ambos deficientes auditivos. Rose abandona um lugarejo de New Jersey e busca em Nova York a mãe, famosa estrela que acolhe crianças carentes na tela e no palco, mas ignora a própria filha. Ben tenta resolver o mistério do desaparecimento do pai. Inicialmente, não é surdo, mas é atingido por um raio e perde a audição. Haynes conta a história dela em preto e branco, como se fosse um filme do período silencioso. E inscreve a dele numa colorida e trepidante Nova York. Esses mundos naturalmente separados por 50 anos vão colidir.

Pode ser que seja por esse confronto, ou pela efervescência nova-iorquina, mas Sem Fôlego é realmente um pouco demais. Sem Fôlego poderia ser a tradução literal de À Bout de Souffle, o grande filme de Jean-Luc Godard, marco definidor da nouvelle vague, lançado no Brasil há quase 60 anos como Acossado e que estará de volta às salas do País nesta quinta, 8, em cópias estalando de novas. Michel Poiccard/Jean-Paul Belmondo vai arrastar Patriciá/Jean Seberg por aquele caminho sem volta, motivado pelo disparo daquele revólver louco (Gun Crazy/Mortalmente Perigosa, o filme dentro do filme, projetado no cinema que a dupla invade). Esqueça Acossado. No quarto de Ben, no filme de Haynes, há uma citação de Oscar Wilde. “Estamos todos na sarjeta, mas alguns olham para as estrelas.” Ben olha a frase e Haynes corta para Rose, que olha a foto da mãe na capa de uma revista.

Mundos paralelos que se refletem como espelhos. Mais até do que em Hugo Cabret, é o mistério do cinema – som, imagem, montagem – que une as histórias de Wonderstruck e permite ao cineasta retomar seus grandes temas. Identidade e linguagem. Não Estou Lá, em especial, não trata de outra coisa. As crianças estão tentando fugir de suas vidas. De alguma forma reescrevem suas histórias – como o Bob Dylan de muitas faces de Haynes. A arte, para o diretor, é uma (re)construção permanente. A arte de contar, de inventar, de se reinventar. Não propriamente a realidade, mas o véu pintado da sua imitação. As crianças, e especialmente a menina, Millicent Simmonds, são maravilhosas. A trilha tem ecos de Major Tom, o astronauta mítico, e fictício, criado por David Bowie e que atravessa toda uma fase da carreira do artista genial que morreu em janeiro de 2016 – em Manhattan, Nova York.

No limite, o grande personagem da caixa de maravilhas de Haynes é o próprio cinema. O segredo é entregar-se à imaginação, e ao convidar o espectador para essa viagem ele se cerca de uma equipe excepcional, formada por colaboradores habituais – fotografia de Edward Lachman, direção de arte de Mark Friedberg, figurinos de Sandy Powell, etc. Só sonhando, nesse estado do mundo, é possível tocar as estrelas e o maior desafio, técnico e estético, do filme é a sua cena final, que engloba tudo. A live action vira diorama, e sem esse modo de apresentação artística, tridimensional e realista, Wonderstruck talvez não resolvesse seu mistério. O mais fascinante é que, sendo um autor racional, Haynes espera que essa viagem passe pela mente, antes que pelo coração do seu público.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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