Mundo das Palavras

A crucificação de Guevara por Kike Paya

O Guevara com olhar maroto e charuto enorme pregado na cruz é uma caricatura de Kikelin, pseudônimo de Kike Paya, artista gráfico espanhol que vive em Segorbe, uma localidade com menos de 10 mil habitantes. Não é nesta pequena população, no entanto, que está todo o público de Paya. Graças à Pinterest, rede social de compartilhamento de imagens, seus trabalhos chegam a muitos países.
 
O local de origem da inspiração de Paya pode ser facilmente localizado. Por meio do Google Maps, qualquer pessoa chega rapidamente a La Higuera, a região da Bolívia onde não só se admite a possibilidade de Guevara ter se tornado um santo. Como se acredita que, depois de morto, ele manteve suas habilidades de médico ampliadas. Sendo, assim, capaz operar milagres.
 
Guevara, como é sabido, foi executado pelo exército boliviano, em colaboração com a CIA, numa escola abandonada de La Higuera, em 1967. Seu corpo ficou exposto numa lavanderia onde só pode ser fotografado por Freddy Aborto. Ocorre que a imagem captada por Aborto logo circulou pelo mundo. Impressionando muitas pessoas pela evocação forte que trazia da figura de Cristo morto, preservada no imaginário cristão, por mais de 500 anos. Conforme mostra a escultura “Lamentações Sobre Cristo Morto” dos anos de 1.400, obra do renascentista André Mantegna. A ponto de levar o crítico de arte Vittorio Sgarbi a declarar: para ele uma exposição ideal teria apenas o Cristo morto de Mantegna, ao lado da foto de Aborta.
 
Na Bolívia, a fusão das duas figuras penetrou na cultura e nas artes. Como mostra, por exemplo, um dos poemas da obra “El Che Em La Poesia Boliviana”, no seu título: “Reza a San Ernesto”.
 
Entre católicos conservadores, a santificação do guerrilheiro comunista provoca irritação. Mas, tal sentimento não é compartilhado oficialmente pela hierarquia da Igreja Católica.  Em vez disto, há alguns meses, o papa Francisco manifestou boa vontade em relação aos comunistas. Ao jornal italiano La Reppublica, declarou: “São os comunistas os que pensam como os cristãos”. Referia-se ao sonho idealista de “uma sociedade onde os pobres, os frágeis e os excluídos sejam os que decidam”. Sua Santidade possivelmente se reportava ao início do movimento comunista, quando Karl Marx trancou-se nas bibliotecas de Londres, em busca de uma base científica para a realização daquele sonho de igualdade, de óbvias raízes judaico-cristãs. Obtendo com seu esforço a elaboração de “O Capital”.
 
Portanto, embora Paya tenha o direito de criticar a crença dos bolivianos de La Higuera, com sua caricatura. Ele não está livre de reprovação por parte de quem o considere incapaz de compreender um fenômeno sociocultural-histórico complexo, como o desenvolvimento, nos seres humanos, do sentimento de respeito àquilo que consideram sagrado.

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