Da janela da cela que ocupava no Convento da Conceição de Beja, madre Mariana Alcoforado via o oficial francês Noel Bouton de Chamilly transitando por sua cidade, Alentejo, Portugal, em 1666. Ela vivia no convento desde muito jovem, deixada ali por sua família. Tinha agora 25 anos de idade. O francês, quatro anos mais velho, estava em Alentejo porque fora contratado pelo Rei de Portugal.
Era a época da “frouxidão dos costumes” nos conventos. Um dia, Noel foi visitar aquela casa religiosa e conheceu Mariana. Um ano depois, já íntimos, os dois passavam noites juntos na cela dela. Mariana conheceu, então, as mais intensas delícias do sexo, aquelas misturadas à forte paixão. Mas a efervescente permanência de Noel em Portugal foi abruptamente interrompida quando seu quartel, na França, o obrigou a se reapresentar ali. E, lá, afastado fisicamente de Mariana, Noel decidiu esquecê-la.
Por sete meses, Mariana escreveu para ele. Enviou cinco longas cartas. E seu silêncio completo fez emergir em Mariana, e naquilo que ela escrevia, todos os sentimentos contraditórios que devastam a vítima de abandono amoroso. Um tipo de tragédia afetiva capaz de provocar dores emocionais das mais profundas e perturbadoras que podem atingir uma pessoa, segundo Regina Navarro Linsé, psicanalista, autora de “O livro do amor”. No artigo “Como sobreviver ao abandono amoroso”, ela acrescenta: “Tristeza, raiva e muitos outros sentimentos podem passar pelo cérebro com tal vigor que mal se consegue comer e dormir”.
Foram estes sentimentos que ficaram bem visíveis em alguns trechos das cartas de Mariana.
Raiva: “Enfureço-me contra mim mesmo, quando medito em tudo quanto te sacrifiquei. Perdi a reputação, expus-me à cólera de meus parentes, à severidade das leis do país contra as religiosas, e à tua ingratidão, que é para mim o maior de todos os males”.
Compreensão: “Neste momento procuro desculpá-lo e compreendo bem que uma freira, de ordinário, não é muito de encantar”.
Orgulho: “Quero que toda a gente o saiba. Não faço dele mistério: prezo-me de ter feito tudo o que fiz, por ti, contra toda a espécie de decoro. Em nada mais faço consistir a minha honra e a minha religião do que em amar-te perdidamente”.
Ciúme: “Haverá cinco ou seis meses, fizeste-me uma confidência molesta, confessando-me com demasiada sinceridade, que tinhas amado uma dama no teu país… Se é ela quem tem impede de voltar aqui, dize-mo sem disfarce, para que cesse de finar-me lentamente. Manda-me o seu retrato, e algumas de suas cartas. Escreve-me tudo o que ela te diz”.
Humilhação: “Há momentos nos quais me parece que seria capaz de submeter-me até a servir àquela que amas”.
Obsessão: “Saio o menos possível do meu quarto. onde tantas vezes vieste. E estou sempre a contemplar o teu retrato que me é mil vezes mais querido do que a vida”.
Saudade: “São passados seis meses sem receber de ti uma só carta”.
Alheamento: “Mas o que me mortifica sem cessar é o enojo e aversão que tenho por tudo… A minha família, os meus amigos, este convento me são insuportáveis”.
Mas, Mariana não era apenas uma freira que suportava estes sentimentos. Se tivesse sido, ela, ainda assim, hoje, nos desafiaria a continuar refletindo sobre um tema fascinante: existe uma natureza humana a-histórica? Pois suas cartas, escritas há 348 anos, ilustram perfeitamente a descrição do sentimento de abandono que pode acometer alguém em nossos dias. Ocorre que estas cartas não pertencem a nenhum acervo de casos clínicos antigos. Mas à Literatura Portuguesa. Porque, se Noel provocou dor, ao negar bruscamente atenção e afeto à Mariana, a atitude dele levou-a a produzir estas cartas, reconhecidas ao longo dos séculos, como obras de arte. E elas não cessam de despertar amor e a admiração por Mariana.