O homem que acredita ser um vírus de computador ou a sobrevivente de Auschwitz que jura ter encontrado Deus no chuvisco de uma TV fora de sintonia – a tecnologia está onipresente em todos os setores da sociedade criada pelo escritor argentino J. P. Zooey. É o que se observa em Sol Artificial (DBA), elogiada coletânea de 12 contos que chega agora ao mercado brasileiro, mais de uma década depois de seu lançamento original, em 2009.
Mesmo assim, a obra continua mais que atual, pois traz personagens que pouco se importam com a profundidade das relações e sim com quantidade de amizades que é possível acumular via redes sociais. "É a rebelião da literatura contra os algoritmos", observa o escritor brasileiro Joca Reiners Terron, grande conhecedor da escrita latino-americana atual. "Ele mistura Vonnegut com Cortázar no bandoneon roubado de Pynchon."
Nascido em Buenos Aires em 1973, o autor adotou o pseudônimo J. P. Zooey inspirado no americano J. D. Salinger, que tem Zooey como uma de suas mais famosas personagens. Os contos de Sol Artificial estão entrelaçados por uma carta que o autor escreveu a si mesmo em que apresenta o que vale a pena lembrar na vida. É a porta de entrada para um mundo estranho e, ao mesmo tempo, familiar, no qual a tecnologia altera a consciência dos homens, mas que Zooey, com sua prosa experimental, combate em busca do mais puro humanismo. Por e-mail, ele respondeu às seguintes questões.
<b>Você acredita que os romancistas têm uma obrigação moral para com seus personagens e seus leitores?</b>
Alguns escritores acreditam que têm uma obrigação moral para com seus personagens e leitores. Mas o problema para eles é que a moralidade é anterior ao momento da criação. A moral é preexistente à obra que o escritor moralista está escrevendo e esse autor deve adaptar sua criação à moralidade que o precede, sua liberdade deve estar de acordo com o status quo. Nesse tipo de autor, o preço a pagar para se sentir justo deve ser muito alto. Claro, eles também sentem um enorme benefício: fazem o que gostam, mas também o que gostam acaba sendo o certo para eles, o que os deuses ou a História da Literatura gostam. Tais escritores encontraram padrinhos eternos para seus desejos. Estou feliz por eles. Ando sem a proteção das Belas Artes ou dos mecenas divinos. Não sinto nenhuma obrigação moral com os personagens ou leitores, não acho que estou fazendo a coisa certa, faço o que gosto e o que gosto sempre varia. A feliz consequência disso é uma grande confusão para mim, para os leitores e para os personagens.
<b>Você está mais interessado em quão diferente o passado é do presente, ou em quão semelhantes diferentes épocas podem ser?</b>
Tenho um interesse inato no futuro. Desde criança, lia revistas científicas populares sobre questões tecnológicas que poderiam acontecer no futuro. Então, descobri na ficção científica uma espécie de sociologia antecipatória. Autores como J.G. Ballard ou Philip K. Dick anteciparam mais eventos sociais do que a sociologia positivista ou hermenêutica. Mais tarde, entendi que tudo o que vai acontecer no futuro já aconteceu uma vez. O tempo é apenas o fluxo incessante de matéria do centro de um disco de vinil universal para sua periferia e da periferia para o centro. Tudo está acontecendo o tempo todo. Todas as músicas soam ao mesmo tempo, mesmo se as ouvirmos uma de cada vez. Alguns escritores de ficção científica podem se arriscar a pular de um vinil para outro e avançar rapidamente uma música.
<b>Vivemos em uma sociedade hiperconectada pelas mais diversas tecnologias de comunicação de massa, mas o resultado disso é solidão e desacordo. O problema está na tecnologia ou no homem?</b>
Acredito que homem e tecnologia não são duas coisas distintas. Por exemplo: não está escrito na natureza que os dias têm 24 horas, e cada hora 60 minutos, e cada minuto 60 segundos. Esse regime do tempo surgiu com os primeiros relógios mecânicos nos mosteiros beneditinos do século 13. É uma invenção tecnológica caprichosa como qualquer outra. Porém, vivemos essa compartimentação do tempo como se fosse natural. Meu inconsciente registra que cada hora tem 60 minutos, mesmo quando durmo. É por isso que sempre acordo às 10 horas. Se meu inconsciente segue o tic-tac artificial, minha imaginação e meus desejos mais inconscientes não estariam seguindo os desígnios do conjunto tecnológico contemporâneo? É possível então questionar se o problema está no homem ou na tecnologia como se fossem duas coisas distintas?
<b>O fato de você usar pseudônimo te permite variar de personalidade. Isso não te dá medo de cair em contradição?</b>
Como já afirmei antes, sou um confundista. Nós, confundistas, amamos a contradição. A vida é muito rica. Homens e mulheres temos uma visão coerente e não contraditória da vida à custa de simplificá-la e excluir muitas forças e energias. Há uma frase de Marcel Schwob que me representa como um confundista: "Pense no momento. Todo pensamento que dura é uma contradição". Naturalmente, essa frase não me representa mais.
<b>Parece que sua ficção se torna cada vez mais urgente. Há, em sua escrita, uma resposta para a falta de empatia na sociedade?</b>
O confundismo é uma resposta à falta de empatia, que nasce das certezas rígidas que homens e mulheres têm em relação ao mundo. Certezas sobre o que o outro é ou não é, o que é tecnologia, o que é a sociedade. Alguns confundistas usamos o ponto de interrogação como uma foice para remover as certezas que, como o joio, parasitam os jardins da mais variada e incerta humanidade.
<b>A distopia faz muito sucesso hoje, especialmente na literatura, no cinema e nas séries de TV. Com quais obras distópicas você se sente identificado? Por que?</b>
Com as obras de Kurt Vonnegut porque incluem ilhas de ternura, loucura e álcool em mundos frios e com muitas certezas que felizmente desabam. O que também gosto em Vonnegut é que seus personagens costumam estar confusos.
<b>Atualmente, é grande o poder das redes sociais, ferramentas eletrônicas e aparelhos como o celular. Você acredita que já estamos diante de uma mutação antropológica, de uma ciber-humanidade nascida na ciberesfera, com as pessoas mais dispostas a se comunicar pelo WhatsApp que pela conversa presencial?</b>
Eu poderia ter essa certeza, de fato. Há um pouco disso em meus livros. Mas também há confusão: neste momento há um gato cuidando de uma criança em qualquer casa de qualquer país, há uma pessoa pintando um símbolo estranho em uma caneca de cerâmica, há outra ouvindo Atahualpa Yupanqui enquanto toma chimarrão em um caminhão rodoviário, essas coisas inconsistentes com o apocalipse, felizmente, me confundem.
<b>Em sua opinião, qual seria a relação da tecnologia com fatos marcantes como as eleições de Bolsonaro e Trump ou mesmo com o Brexit?</b>
As redes sociais e a direita que se apresentam com um forte conteúdo emocional e escassa argumentação estão fortemente ligadas. Pelo menos, essa é a certeza que desenvolvi em meu livro Corazones Estallados. Já no final do livro, há uma entrevista, porém, totalmente confusa e contrária a todas as certezas.
O que esperar do futuro? Hoje, as pessoas estão acostumadas à distância física, o que foi agravado pela pandemia da covid-19, e o contato entre corpos às vezes se parece com uma agressão.
Creio que a humanidade ficará dividida por um lado em aqueles que terão implantes tecnológicos, viverão isolados com seus animais de estimação reais ou artificiais, serão amados por robôs ou avatares companheiros e, por outro lado, os marginalizados que beberão na rua no calor das fogueiras. Nesses últimos, as garrafas passarão de boca em boca como beija-flores, polinizando suas línguas. As melhores histórias serão contadas entre os últimos. Mas os imortais estarão entre os primeiros.
SOL ARTIFICIAL
Autor: J. P. Zooey
Tradução: Bruno C. Matos
Editora: DBA (164 págs., R$ 58)
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>