Quando Gabriel Mascaro começou a escrever Divino Amor, há quatro anos, o Brasil vivia um outro momento. “Muita coisa foi mudando, e a intenção inicial, que me parecia muito clara – refletir sobre o corpo controlado pelo Estado -, foi ganhando uma outra dimensão, justamente por conta da religião que passou a intervir no processo político brasileiro.”
Em janeiro, quando o filme estreou em Sundance, Jair Bolsonaro havia sido empossado como presidente do Brasil. Em 2015, antes da votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, quem quer que o apresentasse como presidenciável seria considerado lunático. Muita coisa mudou, realmente, e o filme dá conta dessas mudanças.
Uma política do corpo. “Em Boi Neon, de 2015, já havia uma pesquisa profunda sobre o corpo e a transformação do espaço. Ao avançar na investigação sobre o corpo e o Estado, era natural que me aproximasse da tradição da ficção científica distópica.”
Divino Amor passa-se em 2027. O filme tem um narrador, a voz de um menino que anuncia que, nesse futuro nem tão distante, o carnaval deixou de ser a grande festa do povo brasileiro e foi substituído pela celebração do divino amor. Um país religioso, evangélico, retratado por meio de uma mulher de fé. Joana/Dira Paes é uma mulher em busca de pertencimento, e que sonha ser mãe. Ao contrário das distopias clássicas, em que o herói se bate contra o Estado opressor, essa mulher acredita na religião, e quer mais.
Uma fábula sobre o novo Messias, o narrador. Nem com bola de cristal Mascaro conseguiria prever que seu filme chegaria aos cinemas com Bolsonaro instalado na Presidência. Tem gente que poderá até tomar Divino Amor como provocação deliberada. Que seja.
O filme chega às salas, numa distribuição da Vitrine – que também distribui Bacurau, e o longa de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, estreia em agosto. A Vitrine está querendo manter o circuito de arte de seus filmes, mas ampliado para abranger salas mais populares. “Acho que vai ser muito interessante”, avalia Mascaro. E, sobre o incremento de Bacurau, outra visão do Brasil projetado no futuro, mas firmemente ancorado no presente, ele diz: “A energia vai ferver”.
O grande desafio de Mascaro era abordar o fundamentalismo religioso sem cair na facilidade da negação. É um mundo de preceitos, mas também de códigos e barras regulados pelos preceitos divinos. Nesse quadro, Joana, a tabeliã Dira Paes, assume como sua vocação, como sua obrigação, manter os casais unidos.
Sua especialidade é evitar separações, e talvez agora ela não consiga impedir a própria. Tudo gira em torno de uma concepção. Controles rígidos regulam a fertilidade feminina, mas não a esterilidade masculina. Não surpreende que o autor de Boi Neon, que já discutiu os papéis de homens e mulheres na sociedade – a questão dos gêneros -, agora vista as fêmeas e dispa os machos (um certo nu frontal do ator Júlio Machado).
Isso levou a que, no debate após a apresentação do filme em fevereiro, no Panorama, no Festival de Berlim, Mascaro tenha sido cobrado por espectadoras certamente feministas. Por que manteve o seu Messias menino? Por que não radicalizou a fabulação, propondo uma, no feminino, Messias?
“Essa possibilidade até surgiu, mas foi descartada, porque achei que estaria surfando numa agenda oportunista, pegando carona nos atuais movimentos de afirmação da mulher no cinema”, justificou.
Não seria um filme de Mascaro, cineasta do corpo, se não tivesse erotismo. O sagrado e o profano impregnam todas as imagens. A representação religiosa se faz com elementos como néon, rave, terapias sexuais. “Se você procurar no YouTube, verá que existem pastores que levam a fundo a questão do sexo na relação do casal e na salvaguarda do casamento. E eles não fogem do tema.”
Com o diretor de fotografia Diego García, Mascaro trabalhou muito o aspecto visual, e a trilha foi importante na construção desse evangelismo pop. “A cultura evangélica baseia-se numa negação da arte sacra católica. Não cultiva imagens de santos, baseia-se numa afirmação da retórica da palavra. Para expressar isso, recorremos a uma exacerbação de aspectos que podem parecer indevidos e até pecaminosos. Luz, fumaça, som. No olhar de Joana, produz-se uma chave inversa e ela lê a distopia como uma nova utopia. E nós abstraímos a matéria para criar um universo sensorial.”
Desde janeiro, Divino Amor circulou por muitos festivais. Após a estreia brasileira, entra em agosto na Holanda, em outubro na Dinamarca. “Estou citando esses países, porque são mercados que me convidaram e já aceitei viajar para participar de encontros e debates. Pela experiência por onde andei, posso dizer que o filme é muito vivo, pulsante, e agrega as mais diversas plateias. Embora seja sobre o Brasil, aborda uma agenda populista, conservadora e cristã que se alastra pelo mundo. Joana é uma mulher que tem fé e deseja uma família completa para ser aceita num grupo que valoriza isso. Sua história é universal. Ela espera um sinal, e quando ele vem é muito maior do que poderia imaginar. É a história de Jesus.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.