Mundo das Palavras

A proibida intimidade da bailarina

O moleque de onze anos vive a poesia. No seu convívio com brinquedos, bichos, plantas. Olhando o imenso céu. Mas, sobretudo, quando pensa na garota de quem gosta a distância. E troca olhares, ao cruzarem em salas de aulas, portas de templos, entradas dos cinemas. Por quem se planta, durante horas, numa rua estranha, à espera de vê-la abrir uma janela. 
 
Para ele é esta garota quem aparece no calendário antigo que pregou na parede de seu quarto. Com roupa de bailarina, sentada, tendo três margaridas nas mãos. O nome do pintor chinês Guan Zeju aparece no pé da imagem? É, acredita, um mistério a mais em torno da criatura admirável. 
 
Aquelas mãos. Se um dia tocasse descuidadamente nelas, iria se sentir orgulhoso e certo de sua coragem, como um cruzado medieval, após seu ato de fé.   
 
De coragem, aliás, o moleque poeta logo irá precisar. Mas ele não sabe disto. Nem das batalhas que vai enfrentar. Pois seu mundo será rechaçado. Em casa, pela família, a exigir que ele comece a “por os pés no chão” e cuide de suas obrigações. Na escola, por professores que não aceitarão seu ar “meio aéreo”. Nem uma mente ocupada com qualquer coisa que não sejam as disciplinas. Na Igreja, pelo padre que achará “perigosa” a atenção dada àquela pequena “filha de Eva”. 
 
E, pior: se o moleque sobreviver nele quando for adulto, vai se tornar um caso de polícia. Como aconteceu com Chico Buarque, em 1982. Ao produzir a letra da música “Ciranda da Bailarina”, ele despertou o moleque poeta adormecido dentro dele. Queria vê-lo descrever a garota que carregava na sua imaginação. Conseguiu. Ela era quase perfeita, se convenceu Chico, já na pele do moleque. Linda como a bailarina do chinês no calendário. De “detalhes deslumbrantes” – como de praxe – visíveis apenas aos poetas. Nela não havia “pereba, marca de vacina, piriri, lombriga, ameba, verruga, frieira, piolho, escarlatina, febre amarela, remela”. Tampouco, “unha encardida, dente com comida, sujo atrás da orelha, bigode de groselha”. Na casa dela, nada de “irmão meio zarolho, goteira na vasilha, problema na família”. 
 
E mais: no armário da bailarina, ninguém encontrava “calcinha um pouco velha”. No seu corpo não nascia “pentelho”. Sim, pentelho. Ou alguém acha que moleque chama aqueles pelos de “pubianos”? 
 
Sem paciência para sutilezas das variações de linguagem, a Polícia Federal, através de seu Serviço de Censura proibiu “Ciranda da Bailarina”. E assim permaneceria até que Chico cortasse de seu texto aquela palavra. 
 
A música foi ser gravada no cd “O Grande Circo Místico”. Com o corte no texto, ficaram três segundos de silêncio, quase no final da gravação da música. Que Chico fez questão de não preencher com outra palavra para que ficasse óbvia a violência que sofrera. Os poucos segundos se percebe com dor porque neles se calam as vozes de crianças que cantaram a música. Silêncio quase imperceptível, mas suficiente para demonstrar a existência de repressão na sociedade brasileira à criatividade dos moleques poetas. 
 
Suas almas livres são vistas como ameaças à nossa “boa ordem social”. Cuja estabilidade cria o mesmo destino para a maioria de nós, brasileiros, antes mesmo que nasçamos. O de sermos moldados pelas famílias, escolas, igrejas e aparelhos repressivos do Estado de um modo que aceitemos passivamente sobreviver de empregos tediosos e embrutecedores, como meros fornecedores de mão-de-obra, capazes de garantir lucro aos investimentos dos empresários. A erupção de originalidade em um de nós contraria a expectativa social. Torna-nos elemento perturbador, subversivo. Para quem está reservado no mínimo, a punição da marginalização social. Quando não, a morte. Quase sempre, por infelicidade prolongada. 
 

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