Mundo das Palavras

A prova de vida

Completava mais um ano de existência naquele mês. Aquela situação o obrigava a comparecer a uma agência bancária. Levando consigo sua carteira de identidade e o cartão com o qual movimenta uma conta, ali. Isto já ocorrera, antes, algumas poucas vezes.
Agora, estava diante do gerente. Homem tristonho, magro, de óculos, “entrado nos anos”. Observava-o. E aguardava o fim do exame atento a que eram submetidos seus documentos. O gerente, finalmente, convencido da validade e da pertinência dos documentos, passou, então, a transferir, os dados contidos neles para o computador de sua mesa.
 
Tudo mecanicamente. E isto incomodou o moleque que se escondia no aniversariante, desde sua infância, passada boa parte em perambulações pelo Mercado do Ver-o-Peso, de Belém, sua cidade. De modo maroto, ele indagou ao gerente:
 
– O senhor fez curso de Medicina?
 
O homem levantou seus olhos tristes. Fixou-os no aniversariante, perplexo com a insensatez daquela pergunta. E ignorou-a. Concentrando-se no teclado e na tela do computador.
 
Depois, atrás de sua mesa, acompanhou a impressão da folha que havia preenchido no computador. Na volta, assinou-a. E entregou-a ao aniversariante.
 
O moleque do Ver-o-Peso insistiu:
 
– Não acha que gerentes de banco deviam estudar Medicina?
 
Havia um sentido óbvio na indagação, para o moleque. Afinal, aquela folha impressa não era uma “Prova de Vida”? Não atestava, diante do Governo Federal, que o aniversariante ainda não morrera? Por causa dela, as autoridades não teriam de controlar o desejo de eliminar logo o aniversariante da sua folha de pagamentos, mantendo os depósitos na conta do banco, a que ele tinha direito, depois de trabalhar umas boas dezenas de anos?
 
O moleque sabia da responsabilidade que pesava sobre os ombros do pobre gerente, diante do aniversariante, portador de artérias do coração enfeitadas com cinco stents e uma próstata ruída por um câncer (felizmente, preguiçoso, pouco inclinado a avanços bruscos).
Desanimado, o moleque já achava que suas investidas não tinham produzido nenhum resultado. Quando viu algo acontecer, de repente, no gerente. Como num milagre, ele entendeu perfeitamente a linguagem do Mercado do Ver-o-Peso. E sorriu. Sorriu de modo espontâneo. Mostrando um rosto bonito, como ninguém imaginaria existir por debaixo da sisudez tristonha. Inteiramente rendido ao moleque do Ver-o-Peso, o gerente segredou:
 
– Nasci apenas dois anos depois de você.
 
Ao sair da agência bancária, o aniversariante estava… não exatamente “leve”,… nem “feliz”. Apenas, pensativo. Olhava o movimento das pessoas e dos carros. E via neles o mistério de uma transcendência ateia. Semelhante ao que existe até num copo com água. Como garante a poeta Adélia Prado. 
 
(Ilustração: pintura da norte-americana Dianne Massey Dunbar, “artista das coisas comuns, dos pingos das chuvas às folhas caídas”)
 

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