Há algum tempo, em São Paulo, um frade da heroica comunidade dominicana do bairro de Perdizes, em São Paulo, executava uma pesquisa acadêmica sobre o seguinte tema: “A diferença entre pessoa e papel social”. Para quem conversava com ele, o dominicano se dizia inconformado com a imposição a todas as pessoas que, como ele, optam pela vida religiosa, de uma espécie de script, de roteiro preestabelecido. No qual já estão predeterminados desde o modo como estas pessoas devem se inserir na sociedade até os singelos gestos do cotidiano que devem ser repetidos por elas. Como, num exemplo dado pelo próprio dominicano, o de afagar as cabeças das crianças.
Membro de uma ordem de homens estudiosos, o frade queria poder estabelecer uma separação entre o que, na vida religiosa, havia de escolha livre e o que era imposição da sociedade. Queria, portanto, estudar a viabilidade de reinventar seu papel social, sem abdicar de nada que fosse essencial à vida escolhida por ele.
Este incômodo revelado pelo dominicano, no âmbito restrito da atuação de um frade, com aspectos eventualmente periféricos dela transformados em critérios de sua avaliação por outras pessoas, foi projetado para o âmbito infinitamente maior da atuação de um Papa pelo escritor Morris West, em seu livro “As sandálias do pescador”, escrito em 1963, quando a Igreja Católica no mundo era liderada pela figura encantadora do sábio camponês Angelo Giuseppe Roncalli, o João XXIII. O Papa de West saía à noite do Vaticano, escondido numa roupa de homem leigo para sentir a vibração da vida e das pessoas comuns de Roma.
O mesmo distanciamento entre pessoa e papel social ocorrido com alguém a quem foi dada a pesada responsabilidade de dirigir a Igreja Católica foi mostrado de modo dramático num filme italiano recentemente exibido no Brasil, “Habemus Papa”, dirigido Nanni Moretti. Esmagado por aquela responsabilidade, o tímido Papa de Moretti renuncia.
Curiosamente, poucos meses depois, Bento XVII, um intelectual rigidamente apegado à Doutrina da Igreja, iria repetir o gesto daquele personagem de ficção. Num contexto de infindáveis denúncias de crimes de pedofilia cometidos por padres, em várias nações, agravado pelo vazamento de papéis secretos que mostraram casos de corrupção no banco do Vaticano envolvendo religiosos em quem o papa havia confiado.
A tremenda responsabilidade de substituir o renunciante Joseph Ratzinger, coube a um argentino despretensioso, uma figura rara segundo a visão folclórica que tem os brasileiros de quem nasce no país vizinho. Um homem com um traço de personalidade totalmente destoante do personagem do Papa, segundo o papel social previamente estabelecido para ele. O traço de quem precisa de proximidade física e emocional no relacionamento com outros seres humanos. Traço revelado em muitas ocasiões em sua passagem pelo Brasil. Mas, sobretudo, no avião que o levou de volta a Roma, quando ele se manteve por mais de uma hora de pé, enfrentando turbulências naquele aparelho, ao sustentar um diálogo com jornalistas de diversoss países, no qual não se negou a responder a nenhuma pergunta. Como se quisesse mostrar que a condução da Igreja Católica pode ser transparente. Embora a tradição dela seja reconhecidamente a de uma instituição pouco democrática, guiada pelo dogma de infalibilidade do Papa.
Certamente, nenhum brasileiro de boa fé fica insensível ao empenho deste comovente argentino. Quem poderia deixar de desejar-lhe boa sorte?