E a 44ª Mostra vai chegando ao fim. Na sexta, 30, o evento anunciou os filmes selecionados pelo público. Daquela lista de 15 – incluindo quatro filmes brasileiros, mais dois com coprodução do Brasil e França, e do Brasil e Argentina -, o júri integrado pelo diretor Felipe Hirsch, pela montadora Cristina Amaral e pela produtora Sara Silveira escolherá o vencedor do troféu Bandeira Paulista de 2020.
O anúncio será feito na quarta, 4, numa sessão presencial no Ibirapuera. Nesta segunda de feriadão – Dia de Finados -, a Mostra homenageia Fernando Coni Campos.
Fernando quem? Artista plástico antes de ser cineasta, ele integrou a palavra-imagem à pintura-poesia para realizar uma obra que, por muito tempo, permaneceu obscura. Não por falta de méritos, mas porque Coni Campos trabalhava na precariedade e, como grande solitário, não se enquadrava nas correntes hegemônicas do cinema brasileiro dos anos 1960, mesmo tendo merecido altos elogios de Glauber Rocha e Júlio Bressane. A crítica (mal)tratava-o sem dó e Valério Andrade não vê muita coisa para salvar em seu texto demolidor sobre Viagem ao Fim do Mundo no Guia de Filmes do antigo INC, Instituto Nacional de Cinema.
Coni Campos morreu em 1988, aos 55 anos, deixando o legado de uma obra formada por sete títulos, dos quais a Mostra resgata três – o citado Viagem ao Fim do Mundo, O Mágico e o Delegado e Ladrões de Cinema, que terá exibição nesta segunda no área externa do auditório do Ibirapuera, às 20h. Em Ladrões de Cinema, em pleno carnaval, grupo vestido de índios rouba equipamentos de uma equipe norte-americana que filma no Rio. A ideia de vender o maquinário é substituída por outra – fazer um filme do ponto de vista da comunidade, o pessoal do morro. Já desde Viagem ao Fim do Mundo, premiado no Festival de Locarno, na Suíça, a obra de Coni Campos tinha esse viés, debruçando-se dobre o próprio cinema.
Numa primeira avaliação, no sábado, 31, a Mostra de 2020, apesar de todas as dificuldades de um evento realizado remotamente – por causa da pandemia -, tem revelado uma participação expressiva do público, com cerca de 70 mil ingressos vendidos em dez dias.
A plataforma da Mostra, mostraplay, é a recordista, com 50.392 espectadores (ou views). No Sesc Digital foram vendidos mais 16.391 ingressos e na plataforma da Spcine Play, outros 13.219.
Os filmes mais assistidos nesses dez dias foram: Entre o Céu e a Terra; Samba do Santo – Resistência Afro-baiana; Sem Cabeça; Luz Acesa; Guerra; Coronation; O Mágico e o Delegado; Não Há Mal Algum; O Livro dos Prazeres; e Mães de Verdade. O que não tem faltado são grandes filmes de grandes autores – o Tsai Ming-liang de Days; o Lav Diaz de Gênero, Pan; e o Frederick Wiseman de City Hall. Esse, a par de ser um grande filme do gênero documentário, é também um filme grande, com mais de quatro horas. Wiseman divide o Prêmio Humanidade da Mostra deste ano com os funcionários da Cinemateca Brasileira, esses empenhados na luta pela preservação da entidade que enfrenta talvez a pior crise de sua história.
Outros grandes filmes: Pari, do iraniano Siamak Etemadi, radicado na Grécia, dedicado à mãe dele, e – talvez maior filme dessa edição – Pai, do sérvio Srdan Golubovic. Se há um filme que expressa o estado do mundo, é esse. De cara, uma mãe entra com o casal de filhos no pátio da empresa em que o marido trabalhava. Ameaça atear fogo nela mesma e nos filhos, em protesto porque a empresa não paga o que deve ao marido demitido, e a família passa por dificuldades. Cumprida a ameaça, a mãe é internada num hospital, à espera de avaliação psiquiátrica, e os filhos entregues a uma instituição para adoção. O pai, sem, recursos, viaja a pé 300 km para apresentar uma petição ao Ministério da Família, em Belgrado. Quer os filhos de volta. Dá entrevista na TV, no jornal, o que enfurece ainda mais o funcionário que trata do caso na cidadezinha em que vive.
Durante todo o tempo, o que se discute são as pessoas, e nunca as instituições, nem o sistema em que vivem. A mãe é instável emocionalmente, o pai não dá conta dos encargos financeiros, mas, em momento algum, a corrupção do funcionário que age de forma autoritária contra o pai e a situação da empresa que não paga suas dívidas são suscetíveis de penalização. Na sua jornada, o pai liga-se a um cão sem dono – ele próprio sente-se abandonado -, ganha algumas manifestações de apoio. De volta à casa, descobre que ela foi saqueada pelos vizinhos.
O que se segue é uma pungente tentativa de restauração da ordem no mundo. Anterior à pandemia, que seria uma desgraça maior a pesar sobre essa família, Pai – o filme – propõe-se como uma experiência emocional visceral. Até onde, até quando a agenda ultraliberal vai seguir ignorando os pobres e fortalecendo a desigualdade para que os ricos sejam cada vez mais ricos? Há algo de neorealista no conceito, mais que na forma, na odisseia desse pai, interpretado por Goran Bogdan. É o maior ator dessa Mostra, como Melika Foroutan, a mãe de Pari, é a maior atriz. Simplesmente extraordinários. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>