Mundo das Palavras

A saga de frei Josaphat

Nos últimos 13 meses do Governo de João Goulart, um grupo de católicos decidiu editar o tablóide mensal “Brasil, Urgente”, que logo iria se tornar porta-voz da corrente política conhecida, na época, como “esquerda cristã”. Este grupo havia se reunido, antes, em torno de um religioso, frei Carlos Josaphat, no interior do convento dos dominicanos do bairro de Perdizes, em São Paulo. E, com a decisão de editar o tablóide, recebeu a adesão de jornalistas, liderados por Josimar Moreira, o diretor da sucursal paulista do jornal de Samuel Wainer. 
 
Deste que começou a circular, o “Brasil, Urgente” conseguiu atrair para a sua rede de colaboradores alguns dos maiores intelectuais e artistas do país como Murilo Mendes, Lígia Fagundes Telles, Antônio Abujamra, Claudius, Paulo Emílio Salles Gomes, Alfredo e Ecléa Bosi. Com isto, frei Carlos se tornou uma figura de expressão nacional no conturbado clima político daquele período, chegando a obter o dedicado apoio para o “Brasil, Urgente” do, na época, ministro de Educação, o líder católico Paulo de Tarso Santos.  
 
Com a instauração do ciclo de governos militares, em 1964, houve brusca interrupção da circulação do “Brasil, Urgente”. Mas, o religioso não chegou a ser preso porque pouco antes da derrubada do presidente da república pelos militares, já havia sido forçado pela alta hierarquia da Igreja Católica, a sair do Brasil. Por longos anos ele viveria exilado na França e depois na Bélgica. Vinte anos depois, continuava no Exterior.    
 
A mesma sorte, porém, não tiveram Paulo de Tarso Santos e um dos mais brilhantes jornalistas do “Brasil, Urgente”, o romancista, dramaturgo e terapeuta Roberto Freire. Presos ambos, Roberto foi submetido à tortura. 
 
Por muitos anos, o episódio da retirada de frei Carlos do país permaneceria insuficientemente esclarecido. Roberto Freire, desde aquela época e de modo cada vez mais candente, passou a se dizer abandonado e traído, no episódio.
 
Em 1981, tentamos entrevistar frei Carlos através de carta. Mas, ainda na Bélgica, ele, ostensivamente, preferiu se manter em silêncio. 
Só no começo dos anos de 1990, por fim, retornou ao Brasil. Então, um dos editores do jornal “O Estado de São Paulo”, nos atribuiu a missão de fazer a aguardada entrevista, na qual o religioso poderia responder às acusações e às queixas de seu ex-companheiro Roberto Freire.
 
A entrevista foi feita, e, o jornal nos pagou por ela. Contudo, nunca a publicou. Segundo o editor que a havia encomendado, frei Carlos – àquela altura, 32 anos depois do Golpe Militar – fora reintroduzido na lista dos assuntos que não podiam ser abordados pelo jornal porque a deposição de Goulart tinha sido defendida ardorosamente por membros das gerações mais velhas da família Mesquita, a de seus proprietários.
 
Da experiência de entrevistar frei Carlos, contudo, resultou a obtenção de um material precioso. O religioso revelou, naquela ocasião, algo completamente desconhecido pelos pesquisadores dos episódios de 1964: antes da deposição de Jango, ele fora convidado para falar para os oficiais da Escola Superior de Guerra. Além de nos contar isto, frei Carlos ainda cedeu uma cópia daquela sua palestra. E mais: frei Carlos nos deu também uma fábula escrita no exílio num momento de grande angústia com os rumos do Brasil. O texto desta fábula continua, igualmente, inédito.
 
Estávamos em 1996, e, o dominicano já tinha, havia algum tempo, retomado suas atividades de escritor, no Brasil. Em 1995, publicara pela Editora Ática um livro intitulado “Contemplação e libertação”, no qual reuniu estudos sobre Tomás de Aquino, João da Cruz e Bartolomeu de Las Casas.
 
Seis anos se passaram, e, em 2002, frei Josaphat teve, por fim, amplo reconhecimento do valor de sua pregação social. Seu livro mais célebre, editado nos anos de 1960, “Evangelho e Revolução Social”, foi republicado pela Edições Loyola. Além disto, a ordem dominicana em São Paulo organizou a edição de um outro livro – “Utopia Urgente” – em homenagem aos seus 80 anos de idade. Para a qual contribuíram, com artigos, antigos companheiros seus do “Brasil, Urgente”, como o cartunista Claudius e o casal Alfredo e Ecléa Bosi e outras grandes personalidades da Igreja Católica. Entre os quais, dom Paulo Arns, dom Pedro Casaldáglia. E, ainda, intelectuais, como Plínio de Arruda Sampaio, Antônio Cândido, Carlos Rodrigues Brandão, Dalmo de Abreu Dallari, José Comblin, e, José Oscar Beozzo.
 
Foi neste mesmo ano que Roberto Freire publicou, pela Edições Maianga, de São Paulo, sua última obra: a autobiografia “Eu é um outro”. E nela, mais uma vez, ele manifestou revolta contra o que continuava a classificar como ato de traição o abandono em que fora deixado por parte da alta cúpula da Igreja Católica, no Brasil, em 1964.
 

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