Em 1926, a grande escritora de policiais Agatha Christie passou onze dias misteriosamente desaparecida, fato que tanto foi explicado como um ataque de amnésia como também de um golpe publicitário, pois acabara de lançar um novo romance. Nunca se soube com precisão o que ela fez naqueles dias.
Mantendo as diferenças, foi o que aconteceu com o escocês Irvine Welsh, em Paraty. Na sexta-feira, 1, ele era esperado para um evento na casa alugada pela editora Rocco, mas, uma hora antes, não foi encontrado – nem no local marcado, tampouco nos possíveis. Welsh só apareceu em cima da hora, visivelmente animado, desinibido e cantando Joy Division.
Foi um dos mais animados eventos paralelos da Flip, com Welsh divertindo ao se divertir de si mesmo. Esse traço de personalidade, aliás, marcou sua passagem por Paraty, uma desconcertante sinceridade que não perdoou sistemas políticos, uso de drogas e até dogmas de outros escritores. No encontro que teve com a imprensa, aliás, na manhã de sábado, 2, o escritor chegou com um reluzente par de óculos escuros. “Nessa hora, eu costumo estar indo dormir e não já estar acordado”, divertiu-se.
Welsh esteve no Brasil pela primeira vez em 1997, quando veio em férias. Queria conhecer todo o País. “Mas errei ao começar pelo Rio, pois não quis mais sair da cidade”, contou ele, que lá se instalou em Copacabana e foi ao Maracanã assistir a um Flamengo x Botafogo. O futebol, aliás, é uma paixão inconteste – Welsh torce para o Hibernian, o Hibs, time da primeira divisão escocesa.
E, ao contrário do que apostavam os presentes – de que os óculos escondiam uma ressaca monumental -, Welsh explicou: “uso esses óculos desde o último dia 21 de maio, quando meu time foi campeão depois de 104 anos. Ando em absoluta felicidade, como se tomasse cristais de MDA (droga que é o princípio ativo do ecstasy) todos os dias”.
Welsh tornou-se uma celebridade literária mundial em 1993, com a publicação de Trainspotting, livro que retomou o velho movimento Beat norte-americano, ao pregar a vida às margens da boa sociedade, das drogas e do álcool, o sexo libertário. E, se para alguns, esse sucesso poderia se transformar em um pesado fardo, Welsh transborda de felicidade. “Por que reclamar de uma obra tão forte, que ocupou um lugar de destaque na cultura ocidental? Isso é um privilégio e me abriu portas para publicar outros livros, piores e melhores que esse.”
Trainspotting foi filmado por Danny Boyle, em 1996, com idêntico sucesso. Ali, ele fez uma ponta e o longa mostra torcedores do Hibs. “Quis que eles aparecessem como caras legais, enquanto aos torcedores dos outros times reservei papéis como estupradores, pedófilos etc.”, cai na gargalhada.
Welsh volta ao cinema agora, como produtor executivo de Trainspotting 2, ainda em filmagem e novamente sob a batuta de Boyle. A previsão de estreia no Reino Unido é janeiro de 2017. Ele volta a ter um papel na trama, mas agora tem mais ambições. “No ano do primeiro Trainspotting, Kevin Spacey ganhou o Oscar de coadjuvante por Os Suspeitos, mas eu estava melhor. Agora, com o T2, o prêmio será meu”, diverte-se.
A vida parece uma eterna felicidade para Irvine Welsh. E, nesse caso, ele acredita se encaixar perfeitamente no Brasil. “No meu primeiro dia em Paraty, eu me preparava para gravar uma entrevista perto do porto quando veio um cara e me ofereceu cocaína. Fazia sete minutos que eu tinha chegado”, observou ele, arrematando em seguida: “Por que tanta demora?”
Sobre o referendo que apontou a vontade britânica de se desligar da União Europeia, ele foi taxativo: “Brexit foi um conflito entre elites. A esquerda democrata foi cooptada pelo neoliberalismo, o que aumentou a desigualdade. Isso transformou os ativos em dívidas, ou seja, quanto mais você quer se educar, mais tem que pagar por isso”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.