Canção da Volta, de Antonio Maria e Ismael Netto, na voz de Dolores Duran, é um clássico da dor de cotovelo. Também é a trilha sonora e título do primeiro longa de ficção de Gustavo Rosa de Moura. Ele dirige a protagonista, Julia, interpretada por sua mulher, Marina Person. Marina estreia em papel principal em um longa de ficção. E o faz com uma personagem difícil, a depressiva Julia, tão distante da sua persona pública como ex-apresentadora da MTV.
Na verdade, são intensas e variadas as dificuldades enfrentadas pelo casal nesse longa de estreias. A primeira delas, a meu ver, reside no tratamento do tema. O Brasil pode andar um tanto baixo-astral com os últimos desdobramentos da política e da economia, mas, ainda assim, vê-se como país da felicidade. Pior, se o termo cabe: o da alegria obrigatória. Aqui não se tolera o silêncio, uma pessoa quieta ou reflexiva, uma pausa para meditação. Tudo é interpretado como tristeza, e esse é um sentimento que, abaixo do Equador, não se aceita.
Muito menos quando se trata da depressão, um tipo de tristeza patológica. Quer dizer, não de forma direta motivada por algum acontecimento adverso, mas algo íntimo, intrínseco, difícil (senão impossível) de extirpar. Freud dizia que a melancolia era o amor pelo objeto perdido, a impossibilidade de realizar o luto e, portanto, se curar. Daí o sentimento paradoxal da família em relação ao melancólico, o deprimido em linguagem atual. Como não existe uma “causa” visível para sua tristeza sem fim, os familiares podem sentir raiva ou compaixão, às vezes ao mesmo tempo.
Enfim, se esse é um problema psicanalítico dos mais complexos, não se torna menos difícil quando enfocado pelo cinema. Porque o problema de Julia não será propriamente aquele invocado pela música de Antonio Maria e que dá título ao filme. Seu sofrimento é de ordem mais indefinível que as tribulações de coração evocadas pela canção. Julia é uma triste, e já tentou se matar.
Daí a construção das cenas iniciais quando Eduardo (João Miguel) retorna à casa depois de uma viagem e se preocupa com o desaparecimento da mulher, que saiu cedo e não voltou. Há uma direção de atores bastante contida nesse particular. João Miguel, se sabe, é dos maiores de sua geração e vai da exuberância à discrição com facilidade aparente. Marina, claro, terá de viver nessa ambivalência do melancólico, sendo para baixo quase o tempo todo, mas com esperanças esparsas de melhora. A felicidade, para ela, é como uma luz descontínua, que pisca de vez em quando e se apaga em seguida. A atriz terá de seguir esse caminho errático. A mise-en-scène acolhe o tom baixo e se reflete tanto na tristeza dos semblantes quanto na pouca luminosidade do ambiente.
Quando Eduardo busca sua mulher nas ruas de São Paulo, a metrópole dura, impiedosa e impessoal funciona como cenário perfeito para um quadro de depressão. É possível que, ao discutir o filme com o marido, Marina tenha pensado em São Paulo Sociedade Anônima, o clássico do cinema brasileiro dirigido por seu pai, Luis Sérgio Person. Nele, também a cidade era personagem e não dos mais amistosos ou acolhedores.
O desdobramento da história de Julia não corresponde a esse bom desenvolvimento. Depois, alguma coisa falta. Não seria a catarse nem talvez o happy end, mas, enfim, alguma progressão que desse à trama sentido de completude. Ou de radical incompletude, o que também serviria como desfecho. Canção da Volta é promissor.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.